Cem dias de solidão. As determinantes sociais da não-doença
Não estamos no meio de uma tempestade, que acabará por passar, mas no meio de uma alteração substantiva do nosso modo de vida que deverá permanecer. Cem dias de solidão são o que podemos prever. Não para cada um de nós, mas para todo@s.
Neste momento o mundo está mais interligado do que nunca. É um paradoxo. Ao mesmo tempo que se levantam barreiras e se constroem muros, se fecham fronteiras entre países irmãos, o mundo todo é o vizinho do lado e o vizinho do lado é o nosso mundo. Pensar que há três meses o problema era de Wuhan e, logo depois, da China. Há pouco mais de um mês era um problema do Irão e, logo depois, do norte de Itália.
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Neste momento o mundo está mais interligado do que nunca. É um paradoxo. Ao mesmo tempo que se levantam barreiras e se constroem muros, se fecham fronteiras entre países irmãos, o mundo todo é o vizinho do lado e o vizinho do lado é o nosso mundo. Pensar que há três meses o problema era de Wuhan e, logo depois, da China. Há pouco mais de um mês era um problema do Irão e, logo depois, do norte de Itália.
Sabemos agora que, ao contrário do que alguns pensavam, não era um vírus chinês, mas o efeito Lorenz numa forma microscópica. Num mundo globalizado, a mobilidade dos hospedeiros fez, em poucos dias, o que a natureza levaria anos: globalizou a SARS-CoV-2 e destapou as desigualdades sociais, económicas e políticas. E acordamos (agora como sempre), todos os dias, num mundo desigual. Infelizmente, após esta crise pandémica ele será ainda mais desigual. Os pobres serão mais pobres e haverá ainda mais pobres. Os ricos, provavelmente, não ficarão menos ricos.
Na Europa do Sul, sobretudo em Portugal, temos uma grande parte da população em idade de grande risco. Temos um país desigual onde se depositam os avós num lar que nem sempre o é. Temos aldeias que mais não são do que terras de gente idosa e temos os centros das cidades cheios de hostels e alojamentos locais, agora, vazios. Acordamos para a realidade de um país extremamente envelhecido e (ainda mais) desigual. Para um sistema nacional de saúde subfinanciado em tempos normais e depauperado/exaurido em tempo de pandemia, incapaz de continuar a sustentar a desejável esperança média de vida em idades mais avançadas. Não nos preparámos a tempo para esta realidade demográfica e, tal como outros países, desde logo a Itália, estamos agora assustados com o risco de perder a geração que nasceu nos anos 30 e 40, de perder toda uma geração em poucos meses. São os nossos pais, os nossos tios e os nossos avós. Se ficamos em casa, se aceitamos perder rendimento e arriscamos a nossa economia, é sobretudo por eles. Para que o próximo Natal volte a ser uma festa de família.
Percebemos também como o isolamento ou o distanciamento social de cada um tem consequências na vida de todos. Nunca como hoje foi tão visível a existência de determinantes sociais na propagação da doença. O vírus não viaja sozinho. São os nossos comportamentos que geram novos casos. Dada a progressão assimétrica do vírus através do mundo sabemos que, ou permanecemos em isolamento nacional ou continental por um longo período, ou o vírus voltará, mal as barreiras à circulação sejam levantadas. Não é verdade que após o pico vem a bonança. Antes pelo contrário, após atingirmos um número máximo diário de casos espera-nos um teste à nossa resiliência coletiva. Não estamos no meio de uma tempestade, que acabará por passar, mas no meio de uma alteração substantiva do nosso modo de vida que deverá permanecer. Talvez estejamos apenas a ganhar tempo e tenhamos que evoluir para outras medidas mais agressivas como a mitigação através do contágio voluntário, seletivo e planificado, de uma parte da população. Talvez medicamentos eficazes ou vacinas possam surgir nos próximos meses. Talvez não saibamos ainda o que e como fazer. Cem dias de solidão são o que podemos prever. Não para cada um de nós, mas para todo@s.
Na solidão da nossa sala de estar, há todo um mundo do lado de fora da nossa janela que importa não esquecer. Quando ligamos a televisão parece que o mundo parou, que o efeito borboleta é um gás neutralizante da realidade. Mas não é a realidade real. Há muitas histórias que foram silenciadas. Milhares de refugiados e imigrantes continuam presos entre a Turquia e a Grécia esperando um amanhã que cante nas economias da Europa ocidental. Em Moria, a vergonha da Europa, morre-se de fome, de sede, de doenças várias e agora, também, de covid-19. Em muitos países de África, não há máscaras de proteção, nem comida, nem saneamento, nem água potável, nem sabão para lavar as mãos. Nestes locais, o vírus vai provocar milhares de mortes sem que seja notícia. A nossa responsabilidade coletiva passa por manter estes temas na agenda das políticas públicas globais. A inércia pode (continuar) a matar!
Este é também o tempo certo para balancear o Estado Social com o modelo liberal em que vivemos. Não deixar ninguém para trás significa repor rendimentos de quem os perdeu e assegurar que não se morre de fome, de sede ou sem abrigo. Para um globalista, como eu, esta é uma ideia válida universalmente, mas a minha ambição é que o possamos fazer, imediatamente, na União Europeia. A ideia do rendimento básico universal pode ser de novo semeada e é agora que poderá germinar. Moratórias no pagamento de despesas de capital e o privilegiar-se a manutenção da sociedade através de ajudas ao rendimento das famílias são o único caminho. Se a União Europeia não for capaz de reagir de forma coletiva e coerente a esta ameaça externa, então, voltará a ser uma mera comunidade económica e devemos promover um downgrading da sua estrutura. Se, pelo contrário, como espero, for capaz de assumir a responsabilidade de superar nacionalismos bacocos que tenderão a surgir em vários Estados-membros, terá definido o seu papel no mundo e sairá mais forte. Na defesa de uma honestidade intelectual, direi que, por enquanto, a União Europeia está muito aquém do seu dever e do seu potencial. Esperamos mais, muito mais.
A progressão global do vírus é uma ameaça universal, pelo que as respostas têm que ser globais. Não há uma solução unilateral para superar a doença causada pelo coronavírus, somente o multilateralismo e a cooperação global. Se a Organização Mundial da Saúde granjeou, nestes meses, a consideração de muitos, deve-se à sua visão macro, desnacionalizada, da pandemia. Outras agências das Nações Unidas serão chamadas a atuar. Estas agências precisam de mais financiamento para acorrer às novas necessidades. Nas próximas semanas, inevitavelmente, são os países mais pobres aqueles que mais vão necessitar da nossa ajuda coletiva. Também neste cenário aguardo que o papel da cooperação no seio da União Europeia a transforme num exemplo para o mundo. Partilha de boas práticas, partilha de meios, ajuda financeira, perdão de dívidas. Em África, na Ásia e na América Latina as consequências tenderão a ser maiores e mais prolongadas no tempo.
Estamos, todos e todas, a viver um teste de stress coletivo. Se soubermos resistir, se soubermos persistir numa base humanista, venceremos. Se, pelo contrário, for a visão economicista a imperar, se salvarmos a economia sem salvar a sociedade, perderemos todos juntos. Esta crise pode ser a oportunidade, há muito aguardada, para um ciclo global de prosperidade se soubermos repartir os custos e alterarmos comportamentos sociais, económicos e políticos que impedem a aplicação de princípios de subsidiariedade global. Tal como Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II nos ensinaram, em 1945, When you walk through a storm, Hold your head up high, And don't be afraid of the dark, (…) Walk on, walk on, With hope in your heart, And you'll never walk alone, You'll never walk alone…
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico