Anarquia, Estado e Utopia
Ou somos bem-sucedidos na construção de um novo contrato social, que inclua o ambiente, ou o capitalismo e as democracias liberais poderão simplesmente perder a licença para operar. Aproveitemos a quarentena para dar a resposta.
“O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas.”
Bertrand Russell
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“O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas.”
Bertrand Russell
A economia portuguesa vai entrar em recessão. Segundo previsões da Católica, a contração poderá variar entre 4% e 20% e, segundo o Banco de Portugal, um milhão de trabalhadores poderão entrar em lay-off. E a nível europeu e mundial o cenário não é melhor. A pandemia covid-19 criou uma disrupção generalizada, ao afetar simultaneamente a oferta (produção) e a procura (consumo). Prevê-se uma crise mais profunda do que a de 2008, comparável apenas à Grande Depressão (1929) e à que resultou da II Guerra Mundial.
A boa notícia é que as crises são sempre oportunidades para afinarmos a rota. Em grande medida, foi em reação aos impactos sociais provocado pela Revolução Industrial que surgiram ideias alternativas, tais como o Marxismo, o Socialismo Utópico, a Doutrina Social da Igreja e a Social-Democracia. Esta última marcou o século XX.
Segundo o economista liberal Milton Friedman, as mudanças dependem sempre da existência de crises e, quando estas ocorrem, “as ações de resposta dependem das ideias disponíveis no momento”, que “mais facilmente poderão surgir como inevitáveis”. Ou seja, o que antes de uma crise poderia parecer ridículo, estranho ou arriscado, poderá tornar-se necessário e consensual.
Esta crise é uma oportunidade para acelerar mudanças estruturais e sistémicas. A escala dessas mudanças dependerá de nós – sendo que poderemos estar perante a derradeira oportunidade para salvar o sistema capitalista, as democracias liberais e o planeta.
Numa entrevista recente, o biólogo Daniel Christian Wahl defendia a tese de um futuro assente numa economia regenerativa e colaborativa, e que o sistema capitalista terá de passar a dar a mesma importância às pessoas e ao planeta que dá ao dinheiro. Também num texto recente, Yuval Harari defende que estamos perante a maior crise desta geração – e que as decisões de cada um de nós e dos governos de todo o mundo nas próximas semanas irão ditar o mundo que teremos nas próximas décadas. Ou seja, não estão apenas em causa os nossos sistemas de saúde e as nossas economias, mas os nossos sistemas políticos e os valores que sustentam a nossa civilização.
Para que esta crise seja uma oportunidade de mudança há três requisitos: i) mantermos elevados níveis de colaboração, ii) assumirmos a inviabilidade dos atuais níveis de desigualdades sociais (os 26 mais ricos detêm a mesma riqueza que metade da população mundial) e dos atuais níveis de stress sobre a biosfera; e iii) desenharmos soluções que sirvam simultaneamente no curto e no longo prazo.
As “corona bonds” não foram bem-sucedidas na última cimeira europeia. Mas e se fossem antes “green bonds” (por exemplo, para investimento em energias renováveis) ou “social bonds” (por exemplo, para construção de habitação social), não poderia o resultado ter sido diferente, já que estaria mais alinhado com as prioridades atuais de crescimento e geração de emprego da União Europeia?
A crise ainda agora começou e já teve consequências positivas, todas impensáveis há semanas. Por exemplo: i) a demonstração do poder dos laços comunitários; ii) o respeito pela matemática e pela ciência (que esperemos se estenda agora às alterações climáticas); iii) o reconhecimento da importância de apoio médico universal (sem o que ficamos todos vulneráveis); iv) a constatação de que a cooperação política é possível, bem como entre setores (os governos estão a fazer o seu papel, mas as empresas e a sociedade civil também); v) a constatação de que a transição digital – por exemplo, no trabalho e na educação – é bem mais fácil e vantajosa do que se previa; vi) o interesse generalizado pelo surpreendente despertar da natureza; e vi) o reconhecimento da importância do local (por exemplo, ao nível das cadeias de abastecimento alimentar).
Tirando apenas partido da internet, numa questão de semanas criaram-se: i) plataformas colaborativas de combate à crise – por exemplo, a tech4covid19.org, a covid.pt e a plataforma de fundraising da Google –, ii) petições a exigir medidas disruptivas – por exemplo, a da “We Move Europe” em prol do Rendimento Básico Universal na UE (já com 125 mil assinaturas) –, iii) plataformas para redesenhar o futuro – por exemplo, a goodaftercovid19.org –, e iv) múltiplas redes locais.
Em síntese, o que está em causa é esta crise poder acelerar a transição para uma anarquia generalizada, assente em isolacionismos e populismos, ou a utopia poder torna-se num projeto coletivo. Caberá aos Estados liderar a resposta – colaborativamente e em nome das pessoas e do planeta. Seguramente, o coronavírus será um teste de stress a todo o sistema. Ou somos bem-sucedidos na construção de um novo contrato social, que inclua o ambiente, ou o capitalismo e as democracias liberais poderão simplesmente perder a licença para operar. Aproveitemos a quarentena para dar a resposta.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico