Morram os filósofos?
Não quero ter de voltar a suspender a respiração quando passar pelos outros. Não quero viver numa sociedade do medo, mas agora as coisas parecem muito escuras.
Venho da rua. De um “passeio higiénico” permitido por lei, como lhe chamou António Costa. Venho de um cenário de filme que nunca pensei encontrar: quase todas as lojas fechadas, poucos carros a circular, gente na rua em fila à distância de segurança para comprar produtos de primeira necessidade. Fui lendo os avisos nos estabelecimentos encerrados e lá está a maldita palavra que a todos assusta: “covid-19”. No masculino é vírus, no feminino é doença. Nunca os dois géneros mais comuns foram tão iguais ao descrever uma realidade intrinsecamente má.
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Venho da rua. De um “passeio higiénico” permitido por lei, como lhe chamou António Costa. Venho de um cenário de filme que nunca pensei encontrar: quase todas as lojas fechadas, poucos carros a circular, gente na rua em fila à distância de segurança para comprar produtos de primeira necessidade. Fui lendo os avisos nos estabelecimentos encerrados e lá está a maldita palavra que a todos assusta: “covid-19”. No masculino é vírus, no feminino é doença. Nunca os dois géneros mais comuns foram tão iguais ao descrever uma realidade intrinsecamente má.
Dei por mim a suspender a respiração quando passava por alguém e sentia que o outro fazia o mesmo. Às vezes disse “boa tarde”, que é, agora, o máximo de proximidade existencial admitida. Com estranhos e com conhecidos. O vírus ataca as nossas defesas não apenas físicas, mas sociais e culturais.
Não fomos feitos para isto. Aprendemos desde cedo que o ser humano é um “animal social”. Kant dizia que a saída do Antigo Regime para as Luzes era tramada, por não estarmos adaptados a ter liberdade. E, por isso, faríamos muitas asneiras, como fizemos em revoluções como a francesa.
Outros filósofos escreveram obras inteiras apelando a um solipsismo que agora sabemos, de experiência feita, que é uma treta. Schopenhauer e o seu existencialismo precoce, depois retomado por Sartre, fizeram um diagnóstico válido, mas apontavam para um individualismo auto-reflexivo. Todavia, não era deste triste isolamento que falavam. Nietzsche verificou a existência de um “super-homem” que hoje não nos serve de nada. Kierkegaard apontava para uma vivência pessoal com um qualquer deus e propendia para a conclusão de que tal nos faria ultrapassar o fosso da nossa imperfeita condição humana (Malraux). Morte aos filósofos? Não. Cada vez acho mais que estes tempos difíceis nos impelem a conhecer mais aqueles e aquelas que se dedicam ao pensamento, à razão última da existência humana.
Voltemos então aos filósofos, mas com a consciência que eles pensavam e pensam, mesmo num “mundo líquido” de Bauman, numa “sociedade do cansaço” de Byung-Chul Han ou numa “sociedade do consumo” de Lipovetsky. Não será este o “fim da História” de Fukuyama, aliás, aplicado em muito diferente contexto. Mas esta malta, mesmo o rigoroso Kant que tinha tempo pré-definido para tudo, podia aproximar-se dos outros.
Mesmo que o não façamos, sabíamos antes desta “estranha forma de vida” que outro ser estava ali ao lado, para ser abraçado, beijado, amado ou odiado. Nunca gostei muito do sentimento de uma casa vazia, ainda que me encontrasse enclausurado num quarto a escrever uma tese de doutoramento. Tempos de abnegação, mas em prol de um bem superior.
É este também o caso de hoje. Mas, na tese, sabia a data-limite, podia ir cortando os dias como um prisioneiro num calendário improvisado. Agora ninguém sabe até quanto isto durará. Talvez agora se perceba melhor o que é a pena de prisão e não se defenda um populismo penal à base de mais tempo na cadeia. Todas as penas, para terem efeito, têm de ser adaptadas ao ser humano e passíveis de por este serem suportadas. O que for para além disto não é humano, é pura retribuição incompatível com um verdadeiro Estado de Direito.
Volto a mim: o facto de folhear a agenda e lá encontrar as aulas à distância que tenho para dar fornece-me alguma sensação de normalidade. Ainda que não veja os meus alunos para lhes dizer o que há muito já sabia: amo-os. Faz-me muita falta ver as suas expressões, mesmo o burburinho da sala, as caretas que fazem quando não estou a ser capaz de exprimir uma ideia. Faz-me falta verificar que ensinar é, essencialmente, uma forma de amar: aprendermos uns com os outros, sermos capazes de dar o que de melhor temos.
O corte epistemológico de Bachelard é um menino comparado com isto. O corte social é dolorosíssimo e vai demorar a sarar. Quando isto acabar, não podemos “adiar o amor”. Manifestemo-lo das mais diversas formas, mas percebamos que esta coisa a que chamamos “vida” só tem graça se houver alguém do outro lado. Se assim não for, o vírus está em nós, como creio estar.
Não vai ser a renovação do mundo, não vamos todos passar a ser perfeitos. Provavelmente, depois de um primeiro momento de beijos e abraços, voltaremos ao solipsismo negativo, porque introspectivo e sem consequências práticas. É mais um dado desconhecido e que depende do optimismo ou pessimismo antropológico com que encaramos a existência humana, em parte inato, em parte adquirido das experiências que levamos no alforge.
Não quero ter de voltar a suspender a respiração quando passar pelos outros. Não quero viver numa sociedade do medo, mas agora as coisas parecem muito escuras. Entre o “vai ficar tudo bem” e o “vamos todos morrer” há um ponto de equilíbrio. Como o encontrar ninguém sabe, nem os “especialistas” que enchem as depressivas televisões de hoje. É mais um mistério nesta aventura terrena. E não haverá uma resposta. Cada um encontrará a sua. Ou não. E nesta última hipótese, espero que cá estejamos para ajudar aqueles que, nesta noite de breu, já se perderam no mar da passividade, do desconhecido, do desafio de uma geração.