Os cenários do day after
Até ontem sabíamos tudo sobre a covid-19. A partir de amanhã não sabemos rigorosamente nada sobre o nosso futuro. A única certeza é que não há certezas.
Day After é o título de um filme de 1983 sobre os horrores de uma putativa guerra nuclear. Na minha geração, como em todo o pós-guerra, o confronto aberto e a destruição recíproca dos blocos ocidental e soviético foi o mais próximo que estivemos do fim do mundo tal como o conhecemos.
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Day After é o título de um filme de 1983 sobre os horrores de uma putativa guerra nuclear. Na minha geração, como em todo o pós-guerra, o confronto aberto e a destruição recíproca dos blocos ocidental e soviético foi o mais próximo que estivemos do fim do mundo tal como o conhecemos.
A história documenta que faltou muito pouco para a realidade ultrapassar essa ficção dos cinemas, mas o certo é que a guerra fria não veio a resultar em apocalipse. E – mais crise climática aqui, menos crise financeira ali – o mundo tal como o conhecemos manteve-se minimamente feliz e razoavelmente próspero até ao Natal do ano passado. Até ao aparecimento do coronavírus, na China. Até à sua propagação aos cinco continentes. Até à globalização do medo. Até à constatação da impotência de países ricos e desenvolvidos perante o avanço descontrolado da quantidade de infectados e do número de mortos. Não esquecer, a propósito da democraticidade do vírus, que a segunda vítima portuguesa foi o presidente do maior banco privado do país – um homem que podia com facilidade comprar hospitais inteiros e tratamentos sem fim.
Até ontem sabíamos tudo sobre a covid-19. A partir de amanhã não sabemos rigorosamente nada sobre o nosso futuro. A única certeza é que não há certezas. A maior das dúvidas é perceber até que ponto vão mudar as regras pelas quais estamos habituados a reger-nos. Nos comportamentos e nas culturas, na economia e na política, também na saúde, claro – o dado adquirido é a perspectiva de mudança.
Podemos porém tomar várias coisas por garantidas. Já no curto prazo. Tal como a pergunta quanto à recessão não ser se chega ou não chega aos dois dígitos do PIB, mas antes qual será o algarismo na casa das dezenas. A mesma questão se aplica à taxa de desemprego e à quebra nas exportações. Qual é a parte do “não há bóias num tsunami” que fizemos de conta que não percebemos na entrevista de António Costa à TVI?
O Estado, esse velho amigo dos fracos, dos oprimidos e dos influentes, terá um problema delicado, embora cíclico. Os verdadeiros contribuintes serão cada vez menos, em oposição ao aumento exponencial dos fracos e dos oprimidos. Vai haver bem menos receita fiscal e muito mais despesa social. Consequências? Congelamento do investimento público e emagrecimento dos serviços constitucionalmente consagrados – saúde, educação, habitação e pão? Redução das prestações sociais e das remunerações da função pública? Se pensarmos no nível de carga fiscal, no patamar de exigência e no tom de argumentação que atingimos, não será preciso explicar o que vai acontecer perante a compreensível incapacidade do Estado. O Estado somos nós. E, como nós, o Estado estará falido.
Será o fim dos subsídios, dos dependentes e dos encostados. A economia vai criar uma multidão de freelancers. Que vão trabalhar mais do que nunca e receber menos do que alguma vez pensaram. Muitos deles vão ficar em casa, suportar os custos do contexto e integrar a nobre actividade do teletrabalho, o novo nome para a precariedade. Os sindicatos – e haverá sindicatos? – vão certamente manifestar-se.
Não é só no mundo laboral – o comércio também vai mudar. Com muitas lojas fechadas para sempre, o consumismo vai desaparecer enquanto modo de vida: a maioria vai deixar de ter dinheiro para o essencial, quanto mais para o supérfluo. Restará o e-commerce.
Mas então e a nossa indústria? Será o que os alemães da Autoeuropa e da Continental, os franceses da PSA e da Renault ou os galegos da Zara entenderem? E o que será da agricultura? Será um módico de frutas, flores e estufas e a tentativa de subsistência nos meios rurais? Serão alguns sobreiros, uns campos de milhos e umas hortas suburbanas das quais falava a Dra. Graça Freitas (e ainda era gozada por isso)?
Acresce a dúvida sobre a vida nas cidades. Será ela um desfilar de marginais e de “walking dead”, como já se vê, hoje, nas ruas de Lisboa e do Porto? Um território de gaivotas famintas, de animais de estimação abandonados e de Airbnb devolutos? Um mundo de auto-estradas vazias e de infra-estruturas sem uso ou manutenção? O Portugal de amanhã será na verdade o quê?
O day after do filme de 1983 era uma desgraça sem nome. O dia seguinte ao coronavírus promete ser de uma incerteza sem fim. O mundo está perigoso, escreveu vezes sem conta Vasco Pulido Valente nas páginas deste jornal. Mas não podemos ter esperança? Podemos sim. Podemos e devemos. É, aliás, isso que mantém os portugueses vivos e a humanidade activa.