A covid-19 isolou ainda mais os idosos. Apoio domiciliário não pára
O apoio domiciliário continua no terreno e ganhou até uma nova dimensão. Reorganização das equipas e da forma de trabalhar ajudam a tentar conter a disseminação do vírus.
De um dia para o outro, as rotinas mudaram completamente. O centro de dia que a mãe de Cristina Faria frequentava, na Maia, fechou, e a mulher de 83 anos viu-se encerrada em casa, sem poder contactar fisicamente com os familiares e tendo apenas ao seu lado o companheiro de 91 anos. Ainda recebeu durante alguns dias alimentação, a cargo do apoio domiciliário da instituição, mas por opção própria deixou de o fazer e agora os dias são cada vez mais difíceis. A filha nota-o a cada telefonema, como o da manhã desta terça-feira. “Senti-a muito angustiada e perguntei-lhe o que era. Disse que estava com muito medo de morrer sem nos ver, sem nos ter ao lado dela, sem se despedir”, diz.
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De um dia para o outro, as rotinas mudaram completamente. O centro de dia que a mãe de Cristina Faria frequentava, na Maia, fechou, e a mulher de 83 anos viu-se encerrada em casa, sem poder contactar fisicamente com os familiares e tendo apenas ao seu lado o companheiro de 91 anos. Ainda recebeu durante alguns dias alimentação, a cargo do apoio domiciliário da instituição, mas por opção própria deixou de o fazer e agora os dias são cada vez mais difíceis. A filha nota-o a cada telefonema, como o da manhã desta terça-feira. “Senti-a muito angustiada e perguntei-lhe o que era. Disse que estava com muito medo de morrer sem nos ver, sem nos ter ao lado dela, sem se despedir”, diz.
Na casa de A. (a terapeuta da fala prefere não se identificar) a angústia é outra. Há dois anos que a mãe da mulher, de 91 anos, está acamada, e até agora a família sempre conseguiu mantê-la em casa. Uma instituição prestava apoio ao nível da higiene e limpeza, uma mulher contratada particularmente passava os dias com a idosa e, à noite, A., as cinco irmãs e um irmão revezavam-se para lhe fazer companhia. A chegada da covid-19 mudou tudo.
O receio de que alguém do núcleo familiar seja atingido pela doença e impeça o apoio contínuo que é necessário levou a família a procurar um lar que aceite a idosa. “Quando começamos esta procura, parecia a solução ideal. Neste momento, com as informações todas sobre os lares, não sabemos, embora pareça que vai ser mesmo o nosso recurso. Isto cria-nos muita ansiedade, não sabemos o que vai acontecer. É uma opção difícil numa situação normal e nesta situação é ainda muito mais difícil”, diz.
As mudanças abruptas que o novo coronavírus trouxe às famílias portuguesas estão a ser particularmente sentidas pelos mais velhos, que, enquanto grupo de risco, se viram afastados do contacto físico de filhos e netos. A mãe de Cristina Faria percebe que não deve sair de casa e prometeu que quando precisar de reabastecer a despensa vai fazer uma lista para que outros lhe tratem das compras. Mas continua a ter muita dificuldade em aceitar o isolamento dos que lhe são mais próximos. “Pediu-me para ir ter com ela, para passarmos a tarde a beber chá e a conversar. Chorou, chorou, chorou ao telefone. Diz que ontem já não ligou a televisão porque não consegue ver mais notícias. Ligou à minha prima para ir lá a casa e eu disse-lhe que tem de parar de pedir às pessoas para a irem visitar, que não pode ser, mas ela diz ‘é só a tua prima’”, diz Cristina Faria, de 44 anos, também ela uma pessoa de risco, por problemas de saúde associados.
Esta vertente emocional e psicológica, que foge ao habitual apoio domiciliário prestado pelas instituições, está na mira da Cruz Vermelha, diz ao PÚBLICO Joana Rodrigues, responsável pela área social da instituição. “Neste momento há uma série de alternativas de resposta que não existiam e que estão a ser oferecidas pela Cruz Vermelha e por outras instituições. E estamos a pensar em todos os quadros, estão a ser equacionadas todas as possibilidades. Criamos linhas de apoio psicossocial, para colaboradores e a comunidade e reforçamos os contactos por telefone aos idosos e famílias que já acompanhávamos, porque esta situação gerou mudanças, causa ansiedade, receios, estados mais depressivos e temos de olhar não só para a saúde física, mas também para a mental e emocional.”
Com uma voz algo cansada, Joana Rodrigues diz que, neste momento, em que a adequação a novas orientações e constrangimentos “é quase diária”, ainda se está a fazer “a recolha do diagnóstico” do impacto que o encerramento dos idosos em casa poderá estar a ter no apoio domiciliário, mas há coisas que já se tornaram evidentes. “Há uma maior procura, muitas vezes só pela entrega de refeições ou de bens alimentares e medicação. Se disser que esse aumento de procura anda entre os 15% e os 25% não andarei muito longe da verdade”, arrisca.
E esse apoio tem sido visível também em formas menos habituais, na mobilização de jovens e vizinhos ou de voluntários junto das autarquias locais que se oferecem para fazer compras aos que não podem e não devem sair de casa. O conceito de “apoio domiciliário” ganhou uma nova dimensão.
A dar resposta
Por enquanto, a Cruz Vermelha está a conseguir dar resposta às solicitações, e o pessoal já se adaptou às novas regras trazidas pelo vírus. Além do cumprimento das directivas sobre a protecção individual, houve uma reorganização das equipas, para que façam sempre a mesma rota, visitando as mesmas casas, e utilizando sempre o mesmo veículo. “Se houver algum caso positivo entre os nossos funcionários é uma forma de evitarmos focos de contágio mais diversificados e identificarmos mais rapidamente os contactos feitos”, explica Joana Rodrigues.
Até agora as medidas têm funcionado, mas, também aqui, diz a responsável da Cruz Vermelha, pode haver mudanças a qualquer momento. “Havendo alterações [da situação ou das directrizes] teremos de pensar em novas regras, que podem passar por as equipas trabalharem numa alternância semanal. Neste momento estamos a conseguir dar resposta, temos de continuar a acompanhar a evolução dia-a-dia”, diz.
As instituições ligadas à Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade também têm agora mais pedidos a que dar resposta, diz o seu presidente, Lino Maia: “Tem havido um aumento de pedidos, até porque a [o Ministério da] Saúde está a pedir às instituições para assumirem o apoio domiciliário de algumas pessoas que aparecem agora com o vírus e que têm de ir para casa, mas não têm retaguarda. Além disso, os nossos utentes dos centros de convívio estão a receber este apoio, ainda que parcial, com a entrega de refeições e cuidados de higiene. Mais não conseguimos garantir.”
Do lado da União da Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, admite que ainda está a tentar perceber como é que a covid-19 estará ou não a influenciar o apoio domiciliário prestado pelas instituições da rede. Mas mostra-se optimista. “Sou um reflector de queixas, quando as coisas se ajustam, ninguém me diz nada e isso é sempre bom sinal. Até agora não me chegou qualquer queixa, o que é bom”, diz. João Ferreira de Almeida, da Ali - Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso diz que também não recebeu qualquer indicação, por parte das instituições privadas da rede que prestam apoio domiciliário em simultâneo com a valência de lar, que exista qualquer constrangimento à prestação daqueles serviços. “95% dos nossos associados são lares de idosos e tanto quanto sei, os serviços que eram prestados antes desta crise mantêm-se. Não sei dizer se houve um acréscimo de procura”, afirma.
Na casa da mãe de A. os apoios domiciliário e familiar continuam enquanto a solução lar não se concretiza. As regras em vigor implicam que qualquer novo utente faça o teste à covid-19 e cumpra um período de quarentena antes de ser aceite. A família ainda não passou da primeira fase. “Liguei para a Saúde24, que atendeu muito rapidamente, e pediram-me para enviar um e-mail a expor o caso. Não sei se enviam alguém a casa para fazer o teste, estamos à espera”. Cristina Faria vai continuar a ligar diariamente para a mãe, mais do que uma vez. “Ela tem muitas saudades do centro de dia, do coro, das auxiliares... É muito complicado.”