Economia em tempos de covid e a urgência de cuidar da cadeia de produção
Vivemos dias que demoram a passar mas que inesperadamente podem trazer uma evolução na situação. Um mês parece uma eternidade e 2020 pode bem ser o ano mais longo das últimas décadas das nossas vidas.
Mudou tudo. Se há um mês, na mesa do café, algum de nós dissesse que hoje estaríamos nesta situação seria adjectivado de muita coisa, tolo e maluco seriam os mais simpáticos. Para que conste – eu utilizaria esses adjectivos. Não sei se estávamos todos errados, nem interessa. Uma coisa parece óbvia, estávamos todos desprevenidos para a actual situação. A realidade abateu-se sobre nós e ninguém pode prever, de forma exacta, em que situação vamos estar dentro de um, dois ou três meses. Vivemos dias que demoram a passar mas que inesperadamente podem trazer uma evolução na situação. Um mês parece uma eternidade e 2020 pode bem ser o ano mais longo das últimas décadas das nossas vidas.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Mudou tudo. Se há um mês, na mesa do café, algum de nós dissesse que hoje estaríamos nesta situação seria adjectivado de muita coisa, tolo e maluco seriam os mais simpáticos. Para que conste – eu utilizaria esses adjectivos. Não sei se estávamos todos errados, nem interessa. Uma coisa parece óbvia, estávamos todos desprevenidos para a actual situação. A realidade abateu-se sobre nós e ninguém pode prever, de forma exacta, em que situação vamos estar dentro de um, dois ou três meses. Vivemos dias que demoram a passar mas que inesperadamente podem trazer uma evolução na situação. Um mês parece uma eternidade e 2020 pode bem ser o ano mais longo das últimas décadas das nossas vidas.
Esta semana, amigos que vivem em Nova Iorque mandaram-me fotos tiradas em plena hora de ponta na Quinta Avenida. Estas imagens arrepiantes são estranhamente semelhantes às do filme apocalíptico de Will Smith com o seu cão Sam. A excepcionalidade parece ter vindo para ficar e o que norteou o nosso pensamento e acção colectiva tem de ser questionado para que novas soluções possam emergir. Pensando da mesma forma de sempre nunca chegaremos às soluções que resultam em tempos como este.
O choque na nossa sociedade, e em particular na nossa economia, é extenso e afecta aquilo que os economistas designam como lado da oferta e da procura. Afecta a produção porque ao fecharem fábricas inteiras, restaurantes ou pequeno comércio se produz menos. Afecta a procura porque as pessoas estão a comprar menos e outra variedade de produtos. Como é natural há vencedores e vencidos mas a caracterização do estado actual não é muito diferente ao que serviu de contexto à chamada “economia de guerra” ou às descrições de Gabriel García Márquez do Amor em tempos de cólera. Em geral, já perdemos e vamos todos perder ainda mais, só que agora os soldados não precisam de bombas, são os médicos que precisam que fiquemos em casa para haver menos baixas.
Tal como em tempos de guerra os países assumem a prioridade de garantir a produção industrial de armamento, esta semana, e de forma pertinente, um grupo de economistas alertou para a necessidade de priorizar a cadeia de valor que garante que produtos básicos continuem a ser produzidos. Isto é fundamental num quadro em que vivemos numa economia cada vez mais interdependente, com as trocas internacionais a acontecerem mais intensamente em todo o mundo. Em 20 anos, as exportações internacionais passaram de 20% do PIB mundial para 30%. Por outro lado, estudos recentes mostram-nos que na produção de um iPhone estão incluídas componentes produzidas directa ou indirectamente em 55 países diferentes. Toda esta teia que caracteriza a produção de bens é tão interdependente que, aquando dos gravíssimos incidentes em Fukushima, no Japão, dezenas de fábricas do sector automóvel na Coreia do Sul ou nos Estados Unidos viram a sua produção paralisada porque dependiam especificamente de uma componente produzida no Japão.
A falta de um produto no supermercado não tem que estar necessariamente relacionada com a transportadora ou o retalhista e precisamos de uma vigilância sobre a produção que substitua a “mão de Deus” pela garantia do Homem. O leite pode faltar no supermercado por causa da produção dos pacotes, mas já pensámos na carne que teremos para consumir se houver uma disrupção na produção de rações para animais ou nos serviços veterinários? Ou já imaginámos o drama que viveremos se tivermos problemas no abastecimento de água, no sector eléctrico ou no transporte de mercadorias? Isto é tudo tão mais crítico num país que está há tantos anos a perder capacidade industrial, capacidade de produção agrícola e a depender mais de importações tanto para o consumo das famílias como para as empresas produzirem, e que pode ter de lidar com a escassez de produtos no estrangeiro. Parece o desenho de uma situação demasiado negra? Sim? Então, preparemo-nos.
Em tempos de caos em torno de papel higiénico, fake news e comportamentos de pânico gerados por boatos, o Estado tem que ter autoridade para que todos os elementos da cadeia produtiva actuem em nome do bem geral e impedir, por qualquer meio, aproveitamentos, individualismos e gestões de stock que visem a maximização do lucro. A vigilância aplica-se a todos os sectores, mas temos que encarar a fortíssima possibilidade dos sectores-chave da nossa economia, que foram erradamente privatizados, terem que cumprir obrigatoriamente a sua função social. Sectores-chave são todos aqueles considerados vitais para que os produtos de primeira necessidade apareçam nas prateleiras e há vários anos que os economistas têm forma de estimar quais são. A partir da análise da matriz input-output da economia portuguesa, disponibilizada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), é possível identificar sectores como a electricidade, os transportes terrestres, os serviços de armazenamento, a produção de água, uma parte da actividade grossista, o sector financeiro e o sector de “outros serviços prestados às empresas” como sectores-chave para que a produção continue a ocorrer. No caso da saúde, os sectores-chave, além destes, são também a indústria química e a indústria farmacêutica. E a conclusão é óbvia, podemos chegar a uma altura onde teremos que fazer escolhas sobre o que produzir e o que consumir e o Estado tem de ter todos os mecanismos para decidir isso.
Por fim, encontrar uma solução num quadro de tamanha incerteza também implica uma ruptura com os conceitos, o léxico e as políticas que tem sido forçadamente implementados nos últimos anos. O mote foi dado por todos os liberais e pessoas que apregoaram o individualismo e o salve-se quem puder e que agora, em plena catástrofe, querem que o Estado as salve em primeiro lugar. A opção não deve ser essa, mas sim a de ter políticas claras que redireccionem a economia para salvar o maior número de pessoas. Desta forma, ‘apoiar empresas’ tem de ser substituído por ‘apoiar postos de trabalho e os rendimentos dos trabalhadores’. Salvar pessoas implica mecanismos públicos para todos. Garantir condições de saúde não pode significar que o privilégio de hospitais privados seja só para alguns. Aumentar a produção tem mesmo que significar aumento da quantidade de produtos e não maior preço ou lucro. Salvaguardar a habitação não remete para o alojamento local, mas antes saber como lidar com aqueles que não a têm ou que estão em risco de ser despejados. Garantir estabilidade não pode ser sinónimo de eternas injecções de dinheiro na banca ou de olhar para os indicadores de empresas, mas garantir o provisionamento necessário de que precisamos para sair desta crise. E bem sei que isto não é só uma mudança de léxico, mas comecemos por aí ao mesmo tempo que passamos rapidamente à mudança de políticas.