Reinventar a comunidade

Talvez o drama global desta estranha Primavera, nestes dias de chumbo, nos esteja a lembrar não só a vulnerabilidade da comunidade humana, mas também o quanto a natureza nos faz falta. Saber perscrutá-la pode oferecer-se como uma oportunidade de redenção para a própria humanidade.

Olhamos incrédulos as imagens que nos chegam de capitais europeias como Paris ou Berlim completamente vazias de gente. Paisagens estranhas e inimagináveis até há poucas semanas. A Primavera chegou envolta numa atmosfera pesada. Nem a limpidez do céu azul, nem a água transparente dos rios transbordantes, nem em geral a natureza luxuriante, apagam a sensação de asfixia geral: cidades despoluídas, mas assustadoras no seu silêncio sem vida humana. Os excessos da sociedade consumista onde vivemos desde há cerca de um século – em especial nós, os europeus – estão agora a ser postos em causa, mas mais do que questionar os vícios burgueses a que nos fomos acomodando nos meios urbanos, importa constatar que a covid-19 não é racista, nem misógina, nem homofóbica nem mesmo classista. Ataca todos e todas.

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Olhamos incrédulos as imagens que nos chegam de capitais europeias como Paris ou Berlim completamente vazias de gente. Paisagens estranhas e inimagináveis até há poucas semanas. A Primavera chegou envolta numa atmosfera pesada. Nem a limpidez do céu azul, nem a água transparente dos rios transbordantes, nem em geral a natureza luxuriante, apagam a sensação de asfixia geral: cidades despoluídas, mas assustadoras no seu silêncio sem vida humana. Os excessos da sociedade consumista onde vivemos desde há cerca de um século – em especial nós, os europeus – estão agora a ser postos em causa, mas mais do que questionar os vícios burgueses a que nos fomos acomodando nos meios urbanos, importa constatar que a covid-19 não é racista, nem misógina, nem homofóbica nem mesmo classista. Ataca todos e todas.

O cenário que temos diante de nós (nos casos em que ainda se pode sair à rua em segurança) obriga-nos a pensar. Traz-nos à memoria não tanto os acontecimentos terríveis do passado, de morte e abandono, de transeuntes moribundos, de caos e de cadáveres em cada esquina que ceifaram milhões de vidas inocentes, catástrofes horríveis como na baixa Idade Média (a peste negra) ou no século passado nos momentos de guerra, genocídios e crimes aterradores (como nos campos nazis ou no Holodomor). O que temos agora é algo de novo. Há uma calma aparente que esconde o pânico contido. 

Aqui onde vivo nestes dias de exílio forçado, o sol irrompeu hoje com particular intensidade. Apesar da temperatura ainda baixa é enorme o apelo para sair à rua e olhar em redor. Numa paisagem limpa e luminosa, percebe-se o desabrochar primaveril a pintar com novos tons multicores os arbustos floridos nas ruas e passeios à beira do rio Saale. Sem ruídos artificiais, a vida animal pressente-se mais facilmente e até os melros e patos parecem olhar em redor estranhando o silêncio. O quadro exuberante que se oferece num primeiro olhar não esconde, no entanto, os movimentos e gestos de evitamento entre os escassos passeantes, que se entreolham e avançam sem parar, sem sorrisos, sem cumprimentos. Reina um clima de bloqueio das sociabilidades de rua. Paira nas nossas cidades uma contenção coletiva. Mas essas amarras parecem querer soltar-se em gestos pontuais de comunhão, visíveis nos aplausos de apoio ao SNS ou nos “panelaços” de indignação (sobretudo no Brasil). Acantonados nas varandas apelamos à vida. Reinventamos a comunidade virtual para mitigar o sofrimento, sem poder evitar o choro silencioso de muitas famílias e o medo generalizado que evolui a par e par com a evolução exponencial do número de casos.

Nesta pequena cidade da Turíngia onde ainda tão recentemente as grandes preocupações sociopolíticas ocupavam o debate público, surge agora diante de nós uma outra realidade, de todo inesperada, mas absurdamente assustadora. Ruas desertas, sem tráfico automóvel e sem movimento, sentimo-nos em pleno centro da cidade mergulhados de repente num mundo fantasmagórico sem ritmo e sem pessoas. Onde parou o consumismo frenético, as corridas das crianças e jovens gritando no parque ou fazendo malabarismos nos seus skates? Onde estão as gargalhadas da juventude de copo na mão na esquina onde se concentram os principais bares? Para onde foram todos? Será que podemos viver assim? Até quando?

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Como é evidente, a sociedade não desapareceu e ela terá de se reinventar em diferentes escalas. Pensadores e poetas do século XVIII, que marcaram a cidade de onde escrevo (como Friedrich Schiller e Johann W. Goethe), descreveram a fragilidade do homem comum como “eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo” e exultaram a força da natureza como fonte de inspiração e criatividade. Mas se a sociedade moderna veio impor novas formas de formatação, também o artífice e o trabalhador se tornaram parte de uma relação estruturada que lhes é imposta, e que na sociedade industrial se consolidou. O Estado moderno (e o mercado), ao mesmo tempo que reestruturou a velha comunidade, criou e edificou a nova nação como Comunidade Imaginada (Benedict Anderson).

Os contextos de sociabilidade onde crescemos suscitam, como sabemos, múltiplas formas de implicação no social. Por exemplo, o conceito de “ressonância” exprime uma atitude humanista de resposta aos problemas coletivos, em oposição a outras como o individualismo, o ressentimento ou a indiferença, qualquer delas sintoma de patologias sociais: “a ressonância é um modo de liquefação na relação entre o ser e o mundo” (Hartmut Rosa, 2015). Trata-se de uma forma de participação social talvez apenas praticada por políticos honestos, profissionais do espaço público ou ativistas e intelectuais engajados. E é duvidoso – hoje ainda mais – que o campo digital seja a alternativa, a não ser como apêndice complementar da esfera da cidadania. Se as redes virtuais são agora usadas como equivalentes funcionais para suprir o isolamento forçado, poderão rapidamente ser exauridas de autenticidade, e olhadas com maior distanciamento crítico quando a normalidade regressar, desde logo porque nestas circunstâncias a pressão do marketing se intensifica nesses meios na mesma proporção do seu uso cada vez mais repetitivo e massificado.

A ideia de morte assusta sempre, mas assusta ainda mais quando o risco de devastação é da ordem dos milhares e agudiza-se a incerteza angustiante perante a avalanche dos números a cada dia que passa. Perde-se o pé perante o sentimento de perda do ente querido que não podemos acompanhar de perto, na doença ou no fim da vida, quando porventura nem pode ter um funeral digno, estamos proibidos da última homenagem, deixados entregues ao isolamento e ao choro silencioso. Desgraçadamente, sabemos que isto estará a acontecer neste preciso momento em muito milhares de lares. Dir-se-á que não é necessário tanto sofrimento para recuperar a solidariedade. Quanto mais calarmos a nossa dor acumulada, maior é a pressão para soltar o grito coletivo, para ampliar o chamamento da partilha, da entreajuda e da proteção aos mais carentes e excluídos. Talvez no fim desta experiência inaudita cada um possa reorientar o seu juízo moralista sobre o vizinho truculento, repensar o ódio acumulado ao rival ou competidor, e em geral relativizar a visão maniqueísta do mundo social. 

A sociedade latente-ausente continua a estar presente, mas ela carece da relação homeostática com a natureza para se reinventar. Há muito que as correntes humanistas das ciências humanas discutem as tensões e complementaridades entre o Homem e a Natureza. Até mesmo J.-J. Rousseau, que viu, antes de muitos outros, as perversões da sociedade sobre o “estado de natureza”, não deixou de nos legar a importância central do contrato social como garantia de equilíbrio entre a soberania e a liberdade. Na verdade, a vida social é inerente ao ser humano que procura a sua realização plena. Estamos, por assim dizer, incrustados na comunidade. Quando ela nos falta ou deixa de funcionar enquanto tal, quando a organização social se desfaz ou se pauta pelo despotismo dos fortes e a submissão dos fracos, aumenta o sofrimento, a resignação, o medo e a violência. Porém, como também mostrou a sociologia clássica (com Émile Durkheim), a consciência coletiva, a solidariedade orgânica e a normatividade social não são incompatíveis com a liberdade individual.

Estaremos a perder o sentido de convivência na comunidade ou a ser obrigados a reinventá-la? Estará a natureza a vingar-se de nós? Goethe, ao escalar o Vesúvio varias vezes enquanto o vulcão esteve ativo, exaltou essa experiência – Viagem a Itália (1786-1788) – reconhecendo que isso o transformou profundamente, chegando a afirmar que se tratou de “um segundo nascimento”. Talvez o drama global desta estranha Primavera, nestes dias de chumbo, nos esteja a lembrar não só a vulnerabilidade da comunidade humana, mas também o quanto a natureza nos faz falta. Saber perscrutá-la pode oferecer-se como uma oportunidade de redenção para a própria humanidade.

Centro de Estudos Sociais/Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; professor visitante na Universidade Friedrich-Schiller, Jena – Alemanha

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico