Défice democrático em tempos de covid-19
Mesmo em plena crise, a imagem continua a prevalecer ao raciocínio. Enxameiam as redes sociais os slogans com as suas fileiras de fiéis, sob a forma de gráficos de curvas em achatamento, desconsiderando o racionamento dos testes em Portugal e que subestima o verdadeiro número de infetados.
A atual pandemia da covid-19 tem desmascarado os défices das democracias atuais, assim como tem agudizado as consequências que decorrem dessas insuficiências.
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A atual pandemia da covid-19 tem desmascarado os défices das democracias atuais, assim como tem agudizado as consequências que decorrem dessas insuficiências.
Tem sido conspícua a ausência de debate público racional e deliberativo, com uma consolidação dos caudilhismos que se avolumam em bola de neve. A hecatombe do momento tem revelado as fragilidades do SNS, muitas vezes disfarçadas com números dourados indiciadores de elevados níveis de produtividade hospitalar, hasteando os louvores da eficácia do SNS. E as pessoas seguem em massa os slogans, homogeneizando-se a opinião pública de um serviço público de saúde musculado e com capacidade de resposta a qualquer desafio.
Com a covid-19 a máscara caiu, e surgem as gangrenas do SNS com faltas de equipamento em múltiplos hospitais, a insuficiência provável de ventiladores (não se sabendo quantos estão disponíveis), a falta de estratégias regionais e hospitalares para responder à doença, sem a habitual racionalidade instrumentalista com que se definem planeamentos para atingir determinadas metas orçamentais, numa lógica de “financeirização pura” dos processos de saúde. Numa situação extremada por uma doença de elevada patogenicidade e infecciosidade, o SNS vê-se obrigado a fazer face a uma doença e a responder aos danos que essa doença provoca. Ou seja, abriu-se a necessidade de uma democratização da saúde, com discussão independente e séria, sem seguir motes de marketing, para aprofundar o entendimento da doença e delinear prevenções e terapêuticas da melhor maneira possível.
Contudo, mesmo em plena crise, a imagem continua a prevalecer ao raciocínio. Enxameiam as redes sociais os slogans com as suas fileiras de fiéis, sob a forma de gráficos de curvas em achatamento, desconsiderando o racionamento dos testes em Portugal e que subestima o verdadeiro número de infetados. A subestimação dos números é também uma subestimação do verdadeiro problema. Ignoram-se as correlações entre doentes infetados, doentes críticos e a capacidade de resposta do sistema de saúde, incluindo público e privados. Ignoram-se as velocidades a que os profissionais de saúde positivam nos testes (e muitos não são testados). Ignora-se a saturação física e psicológica dos profissionais de saúde. Existe uma massificação da opinião que escorraça o espírito crítico dos cidadãos. Os gráficos tornam-se caudilhos que moldam as opiniões, como de resto tem sido culturalmente perseverado em Portugal, com os cesarismos dos líderes mediáticos e da propaganda eleitoralista. É o assomar do espírito “pós-literário” habermasiano. A sociedade tornou-se numa máquina de consumismo, de assimilação de ideias em contraposição com a sociedade literária e ilustrada que gera autonomamente as suas ideias num exercício discursivo.
Surdem os gráficos dos esperançosos e os alardes dos alarmistas, faltando à verdade. E, no desconhecimento da verdade, não se movem esforços para a sua descoberta, não se analisa nem se critica. Porque esse exercício compete às organizações e às autoridades. O indivíduo perdeu a capacidade de criar argumentos. O indivíduo consumista não é pensante. Segue líderes e opiniões fabricadas. E publica dogmaticamente nas redes sociais.
Não é a democracia que tem falhado, mas sim o défice democrático que torna a atual democracia claudicante.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico