Enquanto puder, vou continuar a comprar
Calma, isto não é um apelo ao açambarcamento, longe disso. É um apelo a mantermos vivo o comércio em Portugal, e com ele, milhares, senão mais milhões, de pessoas. Forreta serei sempre, e a minha tentação é poupar para futuros incertos e consumir menos para salvar o planeta, mas agora, enquanto puder, vou gastar dia a dia.
Quando comecei a escrever este texto, hesitei. Sim, todos os dias escrevo notícias, publico informações que considero úteis para as pessoas, faço entrevistas, preparo outros trabalhos de fundo. Mas, em matéria de opiniões, com a quantidade delas que, compreensivelmente, circulam neste momento, achei que mais valia estar calada. Que teria eu a acrescentar a tanta coisa que tenho lido em todas as plataformas possíveis e imagináveis?
A verdade faz-nos mais fortes
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Quando comecei a escrever este texto, hesitei. Sim, todos os dias escrevo notícias, publico informações que considero úteis para as pessoas, faço entrevistas, preparo outros trabalhos de fundo. Mas, em matéria de opiniões, com a quantidade delas que, compreensivelmente, circulam neste momento, achei que mais valia estar calada. Que teria eu a acrescentar a tanta coisa que tenho lido em todas as plataformas possíveis e imagináveis?
Até porque, aqui e ali, começam a ouvir-se aquelas vozes de eternos críticos que acham que não vale a pena dizer-se isto ou propor-se aquilo, e que o importante é mesmo que o que eles próprios têm a acrescentar no meio da barulheira generalizada – embora a barulheira todos os dias me traga notícias importantes, informações relevantes, coisas em que não tinha pensado e motivos para dar uma gargalhada, pelo que não penso, para já, fugir dela.
Dito isto, e como se pode comprovar pelo facto de estar a fazer este texto, pensei duas vezes e decidi que queria dizer pelo menos uma coisa (e, sim, informo os potenciais críticos que não é nada de original e que já outros o disseram antes e que não pretendo dar lições de vida a ninguém), mas aqui vai: enquanto puder, vou continuar a comprar.
Calma que isto não é um apelo ao açambarcamento, longe disso. O que acontece é que nestes dias corremos o risco de nos tornarmos contradições ambulantes – ou, como canta o Ney Matogrosso, de cada um se tornar uma “metamorfose ambulante” (a versão que conheço melhor da música de Raul Seixas) –, coisa, aliás, que suspeito que já éramos. E, por isso, as minhas intenções, sempre suficientemente vagas, de ser menos consumista e de me concentrar no essencial (que, tenho que confessar, nunca me levaram a tomar a decisão plantar as batatas para eu própria comer) deparam-se com o cenário assustador de que tantos sítios, lojas, restaurantes, cafés, mercearias de amigos, de conhecidos, ou de desconhecidos, podem ser vítimas colaterais do novo coronavírus.
Sou, e quem me conhece sabe disso, por natureza poupada. Aos amigos mais próximos deixo mesmo que me descrevam como “forreta” (e eles fazem-no). Os meus avós eram assim e aprendi a ser assim com eles. Nunca me esquecerei de, sempre que saía de uma assoalhada para outra e deixava a luz acesa, ouvir o meu avô, com o seu humor sempre eficaz, lembrar: “Não sou accionista da Companhia de Electricidade”. E lá voltava eu atrás a correr (andava sempre a correr pelos corredores nesse tempo) para a apagar.
Mas acho que neste momento quem tem um ordenado, e menos despesas por estar fechado em casa, não deve pensar que é altura de amealhar mais por não sabermos que tempos difíceis aí vêm. Esta é a altura de comprar “normalmente”, nas medidas das possibilidades de cada um. Com frequência vou à mercearia por baixo de minha casa, e ao talho que fica ao lado, inventando mais alguma despesa.
Uma das coisas que mais alento me dá é que eles estejam abertos (o que me tem dispensado de enfrentar as sempre longas filas para o supermercado) – e, sobretudo, é ver as prateleiras da mercearia cheias de frutas e legumes frescos. Por isso, também, tenho ido ao quiosque comprar o jornal em papel, mesmo podendo lê-lo online, porque se não formos, o quiosque não sobrevive. E fiz a sempre adiada assinatura online de uma publicação que quero muito que continue a existir.
Agora que o café aqui ao lado reabriu com café servido à porta em copos de plástico, estou até a ignorar o problema do plástico porque quero continuar a ver a montra cheia de bolos (também já prometi que vou comprar alguns, mesmo que isso exija reforçar as sessões de ginástica).
E, por tudo isso, achei óptima a ideia de uma amiga que sugeriu pedirmos comida para ser entregue em casa pelo menos um dia por semana. Se pudermos, isso ajuda quem está a tentar salvar os seus restaurantes com serviços de take-away. E devíamos pagar para ver filmes online como se tivéssemos ido à sala de cinema. Ou peças de teatro. Ou bilhetes de exposições. Ou encomendar livros.
É verdade que há um consumismo desenfreado e que não faz sentido deitar fora coisas boas porque entretanto foi lançado um modelo mais recente. É verdade que temos roupa a mais, gadgets a mais, e, de um modo geral, tudo a mais. E que isso é um dos motivos por que o planeta está como está. Sei que esgotamos os recursos com este modelo enlouquecido.
Mas se noutras coisas este é o momento de parar, nesta é o momento de continuar a gastar dia a dia. Só enquanto o dinheiro circular é que todos (ou o maior número possível de nós) conseguirão aguentar-se. O luxo é que podemos escolher ajudar o que para cada um de nós fizer mais sentido.
Há algum tempo fiz com a minha colega Vera Moutinho um trabalho sobre a alimentação e a cidade que começava precisamente com um episódio sobre o poder do consumidor. Este é o nosso poder – já era ontem e hoje é mais do que nunca.
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Forreta serei sempre, e a minha tentação é poupar para futuros incertos e consumir menos para salvar o planeta, mas agora, enquanto puder, vou gastar.
Porque, como escreveu Raul Seixas e eu oiço na minha cabeça com a voz do Ney, “eu prefiro ser / essa metamorfose ambulante / do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.