A história lisboeta de S. Roque, que se isolou para não contagiar os outros

Fora de Veneza só há três cidades com relíquias do santo e uma delas é Lisboa. A história da devoção a Roque, que os crentes dizem ser protector contra pestes, mantém-se presente na vida religiosa da cidade.

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Daniel VILLAFRUELA

Uma doença muito contagiosa espalha-se rapidamente pelo mundo e obriga os governos a tomar medidas drásticas. Lisboa, cidade cosmopolita onde aporta gente de todas as sortes, não escapa. Haverá na vida situação alguma que seja desconhecida dos lisboetas? A julgar pela História da cidade, não.

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Uma doença muito contagiosa espalha-se rapidamente pelo mundo e obriga os governos a tomar medidas drásticas. Lisboa, cidade cosmopolita onde aporta gente de todas as sortes, não escapa. Haverá na vida situação alguma que seja desconhecida dos lisboetas? A julgar pela História da cidade, não.

Há 450 anos, a capital portuguesa foi atingida pelo maior e mais mortífero surto de peste negra que até então conhecera e os lisboetas viraram-se para a colina onde desde o princípio do século XVI morava a esperança de salvação: a pequena relíquia de um santo que, pela Europa, ganhara fama de proteger contra maleitas do corpo e da alma. Esta é a história de como S. Roque se tornou um santo lisboeta e veio a marcar a paisagem espiritual e urbana da cidade.

​“Na Idade Média os grandes medos das pessoas eram a fome, a peste e a guerra”, nota Margarida Montenegro, directora de Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. “Sob o termo peste englobavam-se todas as doenças de carácter epidémico: o tifo, a cólera e também a peste bubónica, a que viria a ser chamada peste negra, que entrou na Europa em 1347.”

Terá sido por essa altura o nascimento de Roque, um homem francês cuja história de vida chegou aos nossos dias com várias dúvidas. Segundo a tradição, Roque provinha de uma família abastada mas ficou órfão muito novo, abdicando da fortuna e partindo em peregrinação até Roma. Pelo caminho ia tratando dos doentes e granjeou a fama de conseguir curá-los.

Estava longe de ser caso único. “Chegaram a agrupar-se os chamados santos auxiliadores”, refere o padre António Júlio Trigueiros, actual reitor da Igreja de S. Roque, historiador e director da revista jesuíta Brotéria. “No século XIV invocou-se muito S. Sebastião. Há muitos santos invocados contra as pestes, muitas vezes porque eles próprios contraíram a peste”, continua, dando o exemplo do jesuíta São Luís Gonzaga.

​Pois a Roque foi também o que aconteceu. Depois de estar em Roma algum tempo e de ali ter conhecido o papa Urbano V, decidiu regressar à Montpellier natal, mas pouco depois quedaria empestado na cidade italiana de Placência. É neste ponto que o padre Trigueiros encontra uma singularidade que aos contemporâneos pode interessar. “A história que nos é comunicada é a de um homem que se retira. Quando ele é contagiado retira-se para uma floresta para não contagiar os outros. S. Roque teve o discernimento de perceber que tinha de se afastar.”

​Nestes dias em que o isolamento se tornou norma, o sacerdote jesuíta vê na atitude do santo um exemplo. “As pessoas por vezes acham que caridade é proximidade. Mas a caridade tem de ser bem discernida. O isolamento pode ser muitas vezes a sua maior demonstração”, diz Trigueiros. Na sua qualidade de capelão da Santa Casa, o padre está por agora impedido de ir aos lares e centros de dia que a instituição gere e, como reitor de S. Roque, viu-se obrigado a fechar a igreja ao culto. Pouco antes dessa decisão, relata, “muitas pessoas iam lá rezar ao altar de S. Roque. Continua a haver uma devoção muito vincada”.

Morrer como estrangeiro

​De onde vem afinal esta devoção lisboeta por um santo francês que morreu em Itália? Palavra ao padre António Vieira, que assim descreveu o assunto na sua Miscelanea Curioza e Interessante em Manuscrito. “No anno de Mil quatrocentos Noventa e seis, no principio do Reynado d’ El Rey D. Manoel, chegou a Portugal a fama dos grandes milagres que S. Roque fazia em França, e na Italia, em todos os feridos da peste; e uindo Lisboa esta noticia, a tempo que Portugal ardia causada de huma Náo Veneziana que entrou neste Porto, quis El Rey aproveitarse dos remédios milagrosos de S. Roque. Mandou pedir à Senhoria de Veneza, aonde esta o corpo deste Santo algumas partes das suas relíquias: vieráo algumas, e do-se ordem a fazer huma Ermida, com a invocação do Santo”.

​A relíquia demora quase dez anos a chegar e, para a receber, é construída a ermida no local onde hoje está a Igreja de S. Roque. Contíguo a esta existe o museu com o mesmo nome, gerido pela Santa Casa da Misericórdia. “Temos no museu uma lápide, de 1527, que nos permite saber que no adro da ermida eram sepultadas as vítimas de peste”, explica Margarida Montenegro. O museu conserva também quatro tábuas com cenas da vida de S. Roque e um sacrário, que estavam na antiga ermida.

Pouco tempo depois de construído esse primitivo templo, o local começou a ser cobiçado pela Companhia de Jesus para aí instalar a sua casa-professa. O Bairro Alto não existia ainda, o sítio era ermo e rodeado de oliveiras. A irmandade de S. Roque, a mando do rei, lá cedeu a ermida aos jesuítas, não sem antes ganhar algo em troca. “As igrejas jesuítas não têm este santo. A dedicação da igreja a S. Roque aconteceu por acordo entre a irmandade e a Companhia de Jesus”, sublinha Margarida Montenegro.

“S. Roque depois tornou-se o grande santuário das relíquias em Portugal”, comenta António Júlio Trigueiros. A do santo francês, que Margarida Montenegro diz ser “uma coisa pequenina que ainda não se sabe bem o que é”, é exposta apenas uma vez por ano, em Outubro, num dia de festa em que há missa e procissão pelas ruas do Bairro Alto. Este ano, porém, houve já um acontecimento excepcional. No segundo domingo de Março, na procissão do Senhor dos Passos da Graça, que liga S. Roque à Graça, a relíquia foi exposta. “Foi um momento bonito, foi precisamente na semana em que estávamos a entrar neste período”, reflecte o padre Trigueiros.

​Todos os anos, no dia da festa, é distribuído um pequeno pão aos fiéis. É uma referência à estada de Roque na floresta, onde, segundo a tradição, um cão lhe levava diariamente um pão para se alimentar. Quando fica curado da peste, Roque retoma o seu caminho de casa, mas é preso em Placência e morre no cativeiro, algures entre 1376 e 1379. “Uma coisa muito curiosa”, alerta Trigueiros. “Ele não morre da peste, morre como um estrangeiro.”