Para eliminar a discriminação racial, celebrar menos e agir mais
O racismo ganhou relevância política, mas continua a ser o parente pobre do combate às desigualdades. São tantos os desafios que, havendo vontade política, há muito por onde começar.
Há muito que Portugal, subscritor da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, “celebra”, a cada 21 de março, o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, que foi instituído em 1969 depois do Massacre de Sharpeville pelo regime do apartheid em 1960. Apesar do combate ao racismo estar inscrito na ordem constitucional e jurídica ordinária – nas vertentes penal e contraordenacional –, convém lembrar que entrou tardia e dificilmente nas preocupações políticas nacionais.
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Há muito que Portugal, subscritor da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, “celebra”, a cada 21 de março, o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, que foi instituído em 1969 depois do Massacre de Sharpeville pelo regime do apartheid em 1960. Apesar do combate ao racismo estar inscrito na ordem constitucional e jurídica ordinária – nas vertentes penal e contraordenacional –, convém lembrar que entrou tardia e dificilmente nas preocupações políticas nacionais.
Em 1996, o SOS Racismo e a Associação Portuguesa dos Direitos do Cidadão apresentaram uma petição para a criação de uma lei contra a discriminação racial que seria entregue na Assembleia da República. Em 1997, a Assembleia da República discutiu-a, reconhecendo a sua pertinência e necessidade. Três anos mais tarde, em 1999, viriam a ser aprovadas por unanimidade na generalidade as propostas do PS e do PCP que dariam lugar à lei contra a discriminação racial (Lei 134/99). Este quadro jurídico criou a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), com competência para a aplicação da legislação de combate à discriminação racial, “reforçada” com a lei 18/2004, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2000/43/CE, mais conhecida como “Diretiva Raça”.
Após 20 anos de vigência inoperante, criou-se a Lei n.º 93/2017, infelizmente uma oportunidade perdida para constituir, de uma vez por todas, o racismo como crime público. Supostamente, entre outras coisas, esta a nova lei alargaria o leque das discriminações, aumentaria a capacidade de dissuasão pelo acréscimo das coimas e pela operacionalidade e reforçaria a prestação pública de contas por parte da CICDR.
O relatório da CICDR de 2018 mostra, por exemplo, que 22,5% das queixas de discriminação se devem à origem racial e étnica, 19,1% à nacionalidade e 17,9% à cor da pele. Neste relatório, verificamos ainda que 21,4% do total das queixas se referem a pessoas ciganas, 17,6% a negras e 13,3% a brasileiras. A inoperância da CICDR é visível, por exemplo, no facto de, das 1399 queixas ali recebidas entre 2005 e 2018, apenas 24% (cerca de 340) ter levado à abertura de um trâmite processual e, gritantemente, apenas 1,7% (25) das queixas iniciais ter resultado numa condenação. Os resultados do projeto COMBAT do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra mostram ainda que, entre 2006 e 2016, a maioria dos 106 processos de contraordenação decorrentes de queixas por discriminação nas áreas da educação, forças de segurança, habitação e vizinhança foi arquivada. Até 2019, a taxa de arquivamento para cada uma das áreas situa-se nos 80%, sendo 22% por prescrição. Segundo esta investigação, apenas 5,8% destes casos resultaram numa condenação efetiva e a média do valor das coimas é irrisória, situando-se nos 731 euros.
A nova legislatura começou com a inédita eleição de três deputadas negras e a entrada da extrema-direita na Assembleia da República. Antes, durante e depois da sua eleição, o debate sobre o racismo, ao mesmo tempo que ganhou visibilidade, revelou quão estrutural é o racismo na sociedade portuguesa. 2020 inicia-se com o caso do assassinato do jovem cabo-verdiano Luís Giovani, marcado pelo laxismo e silenciamento das instituições, assim como pela criminalização da comunidade cigana nos media, pela extrema-direita, por alguns sindicatos de forças de segurança e pelo próprio presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes. De então para cá, tivemos as bárbaras agressões à cidadã Cláudia Simões, um Carnaval marcado pelo repetido “black face” nos festejos escolares e pela agressão xenófoba de duas cidadãs brasileiras, o ataque racista do deputado da extrema-direita à deputada Joacine Katar Moreira, o insulto coletivo a Moussa Marega perante a passividade da maioria dos intervenientes.
Vivemos uma situação em que os populismos fascistas ganharam expressão e representatividade política, apoiando-se em estratégias de banalização do racismo no espaço público e consolidando a estratégia militante de captura das instituições através de infiltrações da extrema-direita. É nesta situação que Marega, através do seu gesto, se tornou de repente no herói da boa consciência de muitos que até hoje se limitaram a encolher os ombros. Passada a espuma do momento, parece que ainda há quem não tenha percebido que o combate ao racismo, seja em que circunstância for, precisa muito mais do que a coragem de um só homem ou de bonitas frases feitas. A continuar a falta de coragem para enfrentar o monstro, estão criadas as condições para a consolidação do fascismo racista. O corajoso e digno gesto de Marega foi um desafio à inércia que tem marcado o combate ao racismo. A dívida moral que o país e a democracia têm para com ele e para com todas as vítimas do racismo só será saldada se estivermos à altura de combater o racismo que assombra a sociedade portuguesa.
O debate vai ganhando contornos esquizofrénicos em que reina a fábula lusotropicalista do país com racistas, mas sem racismo. Grassa uma patológica disfunção cognitiva e uma profunda vontade de silenciamento político do debate sobre o racismo. Mas como é que se quer atacar um privilégio sem causar desconforto? A mudança da ordem social que resulta das relações de poder de uma sociedade pós-colonial marcada pela “linha da cor” não se faz sem criar desconforto. É impossível enfrentar o racismo sem atacar privilégios historicamente acumulados e que sustentam o imaginário coletivo. Há uma elite investida em ostracizar o antirracismo, acusando-o de histerismo e comparando-o com o racismo da extrema-direita. Esta desonesta acusação serve um propósito que interessa desmontar. Colocando-se como “fiel da balança”, procura ter o monopólio legítimo do debate sobre a questão racial. Incapaz de atribuir ao racismo a mesma valoração ética e política que atribuiu às outras violências e incapaz de assimilar que o racismo põe em causa a humanidade, esta elite pretende enfrentar a questão racial sem sobressaltos.
Depois do chumbo da inclusão da pergunta sobre a pertença étnico-racial nos censos pelo INE, do recuo do Ministério Público nas acusações de racismo e tortura no caso da Esquadra de Alfragide, da enchente de discursos racistas no espaço público, da entrada da extrema-direita no Parlamento, dos repetidos casos de violência policial sobre sujeitos racializados, o racismo ganhou mais relevância política, mas continua a ser o parente pobre do combate às desigualdades. Fala-se muito e faz-se muito pouco. Do anterior grupo de trabalho sobre os censos nada se sabe, a não ser algumas declarações da tutela sobre a sua reativação no âmbito do anunciado Observatório do Racismo, sobre o qual também pouco ou nada consta.
A passagem da CICDR para a tutela da Secretaria de Estado da Cidadania e Igualdade não resolve os problemas da sua orgânica e competências. A manutenção das questões relacionadas com a comunidade cigana no Alto Comissariado para as Migrações é inaceitável. Querer implementar uma política de quotas, que é necessária e urgente, sem uma recolha censitária de dados étnico-raciais e através do “método indireto francês” é uma farsa. Uma “educação para a cidadania” com conteúdos curriculares lusotropicalistas e despolitizantes é um logro. Sem orientação estratégica para o ensino bilingue e a regulamentação do estatuto do mediador socio-cultural, a escola continuará a ser um espaço de exclusão. Uma “agenda da igualdade” que não responda à precariedade habitacional das pessoas racializadas reforçará a sua segregação. Uma política de emprego que não contemple medidas de reconversão profissional deixará de fora muitas pessoas racializadas. Celebrar a diversidade cultural sem uma política memorial que rompa com a romantização colonial é um silenciamento da nossa história comum. Exaltar a participação política através do tokenismo ou da meritocracia é reforçar a invisibilidade. São tantos os desafios que, havendo vontade política, há muito por onde começar.
Ultimamente, apareceram na Assembleia da República uma série de recomendações sobre o racismo. E ainda bem. Mas, nos últimos 20 anos, foram também várias as que apareceram sem que fossem efetivamente traduzidas numa lei, programa ou ações com resultados concretos. O combate ao racismo nunca teve centralidade nas políticas de igualdade e continua a não ter, como o provam os vários Orçamentos do Estado. Hoje, tão longe de derrotar o racismo, a celebração da efeméride tem que ter substância concreta. A carga simbólica da data exige uma ação política que vá para lá das proclamações abstratas a cada 21 de março.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico