Em que mundo vais tu nascer, minha Estrelinha?
Hoje é o Dia do Pai. Não vou ver nem abraçar o meu pai, nem o meu filho. E isso dói. Mas já senti na minha mão os pontapés da Estrelinha. Pontapés de esperança.
Tenho 45 anos. Nos últimos 12, mais coisa menos coisa, tive cancro por três vezes, fui submetido a dois autotransplantes de medula óssea, fiz hemodiálise durante um ano e meio e, desde há cerca de dois anos, sou também transplantado renal.
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Tenho 45 anos. Nos últimos 12, mais coisa menos coisa, tive cancro por três vezes, fui submetido a dois autotransplantes de medula óssea, fiz hemodiálise durante um ano e meio e, desde há cerca de dois anos, sou também transplantado renal.
Sei que a minha história clínica é impressionante, mas não vou alongar-me mais sobre isso, pois é assunto sobre o qual já escrevi dezenas de vezes. Serve, contudo, o intróito para justificar o facto de actualmente tomar imunossupressores, condição que torna, como o nome indica, o meu sistema imunológico mais vulnerável a doenças oportunistas como a covid-19.
Na última terça-feira, ausentei-me de casa para ir a uma consulta de rotina ao Centro Hospitalar e Universitário da Universidade de Coimbra (CHUC), consulta essa que, por razões clínicas, era indispensável.
Enquanto aguardava a chamada no corredor (sala de espera repleta, impedindo o cumprimento da recomendável distância de segurança), observando a movimentação de médicos, enfermeiros, auxiliares e outros utentes do serviço, o ritmo de tudo o que via foi progressivamente abrandando até congelar numa fotografia de pessoas envergando máscaras que evidenciavam os olhos assustados. Os Olhos Falam, poema de João de Deus, conclui-se num eloquente “Debalde os lábios se calam, falam ainda os olhos melhor”.
Mantenho os olhos na fotografia e sinto o medo florescer em mim, um género de medo que só me lembro de sentir quando o meu filho, com três ou quatro anos, teve uma convulsão febril que o deixou prostrado. À recordação do meu filho João, hoje com 14 anos e forte como um touro, junta-se a da minha filha, a Estrelinha, frágil ainda no ventre da minha namorada, a Teresa, cuja normalíssima ansiedade pela condição pré-natal naturalmente se agrava com estes dias tenebrosos. A fotografia dos três sobrepõe-se à do cenário hospitalar.
Sinto uma lágrima correr-me cara abaixo ao ver o sorriso do João e a barriga proeminente de cinco meses e meio da Teresa e pergunto-me em que mundo vai nascer a nossa Estrelinha. Essa ideia assusta-me até à náusea e eis que um filme de terror acelera em frente aos meus olhos, mostrando destruição, sofrimento, caos. O meu coração dispara, sinto-me suado e a cabeça leve, à beira do desmaio. Fecho os olhos para fugir ao cenário assustador, respirando fundo algumas vezes por trás da máscara. O coração abranda.
Abro os olhos e recordo a frase que um senhor japonês, de seu nome Hiroshi, me disse um dia a bordo de um avião: “Quando fechamos os olhos e os abrimos de repente, há um brevíssimo momento durante o qual o nosso cérebro ainda não analisou o que está a ver, pelo que não distingue cores ou formas e nem sequer descodificou o que se está a passar à nossa volta. Procuro viver sempre o mais perto possível desse estado de indefinição, pois trata-se de uma recusa a análise, sempre imperfeita, da realidade.”
Nada será como dantes depois disto, isso é certo, cogito. Uma evidência à qual se junta outra tantas vezes esquecida: o futuro é imprevisível.
Na vida só temos duas coisas, o presente e as memórias. No futuro não há nada, pelo que ninguém sabe se uma mudança será para melhor ou para pior. Sabemos que o momento actual é mau, nenhuma dúvida sobre isso. Mas, neste momento, a verdade é que a Estrelinha está protegida no casulo da mãe e o João está resguardado em casa. E é essa nova fotografia que dissipa a náusea da dúvida e me tranquiliza no corredor do CHUC.
A nossa mente teima em fugir do momento actual, vagabundeando incorrigivelmente pelo futuro, assustando-nos com a imprevisibilidade, nutrindo um medo que nos leva a distorcer a realidade. De forma inata, sentimos um medo positivo que nos permite mantermo-nos vivos, foi esse o medo que nos permitiu chegar até aqui, atravessando milénios de catástrofes, e é esse o medo que devemos alimentar agora, mantendo-nos em casa, resguardados, respeitando-nos e aos outros, tentando controlar o outro medo, o medo perigoso, o medo capaz de libertar o pior de nós mesmos da forma mais destrutiva e autodestrutiva possível.
Há que controlar a mente e canalizar a nossa atenção para o momento presente, procurando gestos de amor no meio de toda esta desgraça, de todo este sofrimento e tristeza. Hoje é o Dia do Pai. Não vou ver nem abraçar o meu pai, nem o meu filho. E isso dói. Mas já senti na minha mão os pontapés da Estrelinha. Pontapés de esperança.
Jornalista, palestrante e autor dos livros O Sofrimento Pode Esperar (2016, Ed. Albatroz) e Quantas vidas temos? (2019, Coolbooks)