Coronavírus: o cisne negro da modernidade
Era bom que depois de atravessarmos o perigo do coronavírus e de lamentarmos cada uma das mortes que ele vai provocar, conseguíssemos sair do perigo com novos hábitos de vida, mais cientes das nossas limitações e da nossa fragilidade, mas mais solidários, menos consumistas, mais amigos do outro e do planeta. Isso é não só possível como desejável.
O filósofo Karl Popper, em páginas brilhantes em que discutiu a nossa relação com a realidade e o mistério da percepção humana, usou o exemplo dos cisnes brancos e dos cisnes negros para mostrar as limitações do nosso quadro mental face à complexidade do mundo. A percepção ocidental de que os cisnes eram todos brancos sofreu um abalo sísmico quando os primeiros navegadores britânicos chegaram à Austrália e se depararam com cisnes negros. Isso estilhaçou o quadro mental existente e abriu novos horizontes para a percepção humana. Hoje utilizamos o conceito dos cisnes negros para designar fenómenos raros que têm baixa probabilidade de ocorrência mas que, quando aparecem, mudam tudo. É o caso do coronavírus. Face a ele as nossas certezas desabam. Vivíamos ciosos de que podemos controlar o mundo, a economia, o planeta. E, de repente, o mundo fica de pernas para o ar. O coronavírus vem lembrar-nos que o mundo é feito de incerteza e mudança, que a nossa civilização é frágil, que a vida é precária, que o nosso sonho de tudo dominar acaba sempre dominado pela realidade.
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O filósofo Karl Popper, em páginas brilhantes em que discutiu a nossa relação com a realidade e o mistério da percepção humana, usou o exemplo dos cisnes brancos e dos cisnes negros para mostrar as limitações do nosso quadro mental face à complexidade do mundo. A percepção ocidental de que os cisnes eram todos brancos sofreu um abalo sísmico quando os primeiros navegadores britânicos chegaram à Austrália e se depararam com cisnes negros. Isso estilhaçou o quadro mental existente e abriu novos horizontes para a percepção humana. Hoje utilizamos o conceito dos cisnes negros para designar fenómenos raros que têm baixa probabilidade de ocorrência mas que, quando aparecem, mudam tudo. É o caso do coronavírus. Face a ele as nossas certezas desabam. Vivíamos ciosos de que podemos controlar o mundo, a economia, o planeta. E, de repente, o mundo fica de pernas para o ar. O coronavírus vem lembrar-nos que o mundo é feito de incerteza e mudança, que a nossa civilização é frágil, que a vida é precária, que o nosso sonho de tudo dominar acaba sempre dominado pela realidade.
O coronavírus é trágico porque mata e cada morte é uma perda que nada pode reparar. Os especialistas vêm lembrar que as mortes provocadas por outras epidemias ou pelos acidentes de viação são em muito maior número. Só que essas mortes já fazem parte do nosso quadro mental e por isso já não temos medo. O que assusta é o vírus desconhecido, cuja vacina ainda não existe, e parece muito contagioso. E por isso o coronavírus é um acelerador do medo. Nós vivemos em sociedades do medo que às vezes se torna desmesurado. Um estudo da Universidade de Harvard indica que se o coronavírus se transformar numa pandemia global, um em cada seis adultos no mundo pode ser infectado, mas que destes 98% vão sobreviver. Será que a taxa de letalidade é baixa? Não sabemos, porque varia de país para país, depende do ritmo de propagação do vírus, da capacidade de interromper as cadeias de contágio, da qualidade dos sistemas de saúde e das políticas de prevenção adoptadas. É um grave problema global de saúde pública e convém usarmos a racionalidade tanto quanto possível, murar o medo e confinar o catastrofismo.
Mas o coronavírus veio também questionar o nosso modo de vida. Nós vivemos na civilização da pressa, do movimento contínuo, das viagens constantes, do consumo frenético, da delapidação exponencial dos recursos E, além de tudo isso, estamos confrontados com a mudança climática e com a necessidade de mudar comportamentos. Durante anos vimos os parcos resultados das sucessivas conferências climáticas, das proclamações dos líderes, dos gritos dos activistas. Muito pouco aconteceu. De repente o coronavírus obrigou-nos a parar, a moderar a pressa, a viajar muito menos, a reduzir as reuniões, as conferências, as deslocações, reduzir as visitas aos centros comerciais e aos pólos de consumo. Obrigou-nos a ficar em casa, a pensar e a reflectir, a reinventar o trabalho à distância, a substituir as reuniões por meios digitais, a mudar hábitos. Afinal, é mesmo possível mudar e viver de outra maneira. Depois das cruzadas contra as tecnologias, afinal podemos viver e trabalhar digitalmente, e isso pode fazer toda a diferença.
Por outro lado, o coronavírus pode levar a uma redução das emissões de CO2 e contribuir para estabilizar o clima do planeta. Quando vemos as fotografias de satélite das cidades chinesas, que estão entre as mais poluídas do mundo, onde o trânsito é reduzido, podemos dizer que esta pausa é má para a economia mas boa para o planeta. 2020 arrisca-se a ser o ano da queda significativa das emissões de CO2 no mundo. Vamos tirar férias do planeta e o planeta de nós e isso pode ser o início de um novo caminho. O que pode acontecer é que daqui a uns meses, quando a vacina for descoberta, tudo regressa à normalidade, e esta mudança de hábitos não deixar rasto. E isto não devia acontecer. O escritor inglês Gilbert Chesterton dizia que o despropósito do mundo advém do facto de nós nunca perguntarmos qual é o propósito. Temos de deixar de viver numa civilização em que a pressa é tudo, o movimento é tudo e o objectivo não é nada.
Mas o coronavírus interroga também os fundamentos do nosso modelo de desenvolvimento económico e social. Ele está a paralisar a economia, fecha as fábricas, causa a ruptura das cadeias logísticas e de abastecimento, cerceia o comércio mundial, diminui drasticamente o turismo. Nós vivemos numa civilização que coloca todos os dias no ar 12 milhões de passageiros. É muita coisa. O coronavírus vai obrigar-nos a repensar. Se olharmos para as grandes epidemias da história, elas tiveram um impacto brutal no modelo económico do seu tempo. O caso mais paradigmático é o da Peste Negra. Ela causou a desintegração do modelo de produção feudal. O coronavírus pode levar à desintegração do modelo de capitalismo selvagem, o capitalismo sem regras, sem regulação, sem controle, que periodicamente abala o planeta com crises que causam um sofrimento atroz. O capitalismo cria riqueza, prosperidade e bem-estar mas o capitalismo selvagem aprisiona a maior parte da riqueza gerada no topo dos mais ricos. É preciso repensar o modelo, distribuir a riqueza, repensar o papel das empresas, ir além do mantra do lucro a todo o custo para um capitalismo que sirva os “stakeholders” e gere bem-estar para accionistas, trabalhadores, comunidades e a sociedade em geral. Esta paragem abrupta da economia global pode levar a uma introspecção profunda e à geração de novas ideias. É difícil porque vamos a caminho de uma recessão global e de muita dor e sofrimento. Mas precisamos de um novo modelo que seja moderado e sustentável na gestão e consumo dos recursos, não faça perigar o planeta e, ao mesmo tempo, assegure que as pessoas de menos rendimentos e recursos não caiam abaixo da linha de pobreza.
No que concerne a Portugal, o coronavírus vai testar as capacidades do SNS e da governação. Vai questionar o nosso modelo de desenvolvimento económico e a sua excessiva dependência do turismo. O turismo tem desempenhado um papel relevante na economia portuguesa e oxalá que continue a desempenhar, mas sabemos que a aposta excessiva no turismo torna a economia frágil e volátil porque quando as pessoas deixam de vir os problemas são brutais. É essencial diversificar a economia, criar novos motores de riqueza, repensar o desenvolvimento dos recursos nacionais e não usar o turismo para asfixiar tudo o resto. Podemos pagar muito caro esta falta de visão. Mas o coronavírus pode levar também ao fecho do futebol e sem jogos vamos ter um espaço público mais saudável, sem os trogloditas do costume, que se insultam em directo e fomentam o ódio. Seria a ironia suprema: o coronavírus calar, durante algum tempo, o vírus dos taliban do futebol nacional.
O poeta alemão Hölderlin escreveu um dia: “Quem atravessa o perigo toca a salvação.” Era bom que depois de atravessarmos o perigo do coronavírus e de lamentarmos cada uma das mortes que ele vai provocar, conseguíssemos sair do perigo com novos hábitos de vida, mais cientes das nossas limitações e da nossa fragilidade, mas mais solidários, menos consumistas, mais amigos do outro e do planeta. Isso é não só possível como desejável.