Coronavírus: quando uma mãe testemunha as falhas do sistema nacional de saúde
Horas e horas à espera de ser atendida na Linha de Saúde 24. A recusa da realização de um teste num hospital público. Perguntas sem resposta, angústia e ansiedade. Quando uma mãe tenta despistar o contágio da filha de cinco anos e testemunha as falhas do sistema nacional de saúde.
Comecei a escrever esta crónica de madrugada. Eram 2h40 de quinta-feira. Antes, já estivera uma hora à espera de ser atendida pela famosa Linha de Saúde 24. Sem sucesso. Fiquei em espera cerca de uma hora e depois a chamada caiu. De seguida, outros 40 minutos à espera que a linha voltasse a estar operacional. Falava para a linha telefónica e ouvia a seguinte mensagem: “O cliente para o qual ligou não se encontra disponível.”
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Comecei a escrever esta crónica de madrugada. Eram 2h40 de quinta-feira. Antes, já estivera uma hora à espera de ser atendida pela famosa Linha de Saúde 24. Sem sucesso. Fiquei em espera cerca de uma hora e depois a chamada caiu. De seguida, outros 40 minutos à espera que a linha voltasse a estar operacional. Falava para a linha telefónica e ouvia a seguinte mensagem: “O cliente para o qual ligou não se encontra disponível.”
A razão que me levou a ligar é simples. Depois de cruzar várias informações, comecei a suspeitar do eventual contágio da minha filha de cinco anos com a doença covid-19. A dúvida interrompeu-me literalmente o sono, após um forte ataque de tosse seca da minha filha, um sintoma que insiste em se manter há mais de dez dias. Mesmo assim, não haveria razões para alarme se o meu marido, regressado do estrangeiro, não estivesse de quarentena e, mais importante, se a minha filha não tivesse tido contacto com uma prima que estivera a viajar pelo Norte de Itália até o primeiro dia de Fevereiro. Eu própria, jornalista do PÚBLICO, contactara socialmente com um colega do jornal que esteve em Milão a cobrir a feira de calçado, que este ano se realizou entre 16 e 19 de Fevereiro. Isto a juntar ao habitual poço de vírus que as escolas compreensivelmente são.
O meu marido voltara no sábado do estrangeiro e na terça, depois de passar pelo crivo da Saúde 24 e de um médico, ficou com o selo de “vigilância activa” nas duas semanas seguintes, em casa e com uma máscara que prevenisse eventuais contactos com o resto da família.
Rapidamente decidimos que ele ficaria confinado a uma divisão da casa e os restantes membros do agregado – uma pessoa de 86 anos, uma de 67, eu própria, de 41 anos, e os meus dois filhos, um de dois e outra de cinco anos – ocuparíamos o restante espaço. Mandei desinfectar o quarto onde o meu marido ficaria e pedi que fossem mudadas todas as toalhas e lençóis da casa. Durante a quarentena, dormiria com os meus filhos.
As intensas leituras a que me tenho dedicado nos últimos tempos e, em particular, depois de o meu marido ter entrado de quarentena deixavam-me tranquila relativamente à minha filha de cinco anos. Afinal retivera as sábias palavras de Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que, num artigo publicado no PÚBLICO, deixava claro que, apesar de as crianças com menos de dez anos terem “o mesmo risco de serem infectadas do que o resto da população”, estas “tendem a ter sintomas suaves”.
O mesmo não posso dizer relativamente à minha mãe e à minha sogra, que connosco coabitam. Recordava-me bem de ter lido um estudo sobre a taxa de mortalidade da covid-19 na China que concluía que na faixa etária com mais de 80 anos a mortalidade atingia quase 15%. Isso mesmo recordava Manuel Carmo Gomes, que precisava, no artigo acima citado, que, numa amostra de 44.672 doentes chineses, a mortalidade por doença foi de 0,2% entre os dez e os 40 anos de idade, de 1,3% até aos 59 anos, de 3,6% entre 60 e 69 anos, de 8% entre 70 e 79 anos e de 14,8% nos maiores de 80 anos. Além disso, ambas apresentam factores de risco para a covid-19. Os números martelavam-me a cabeça e daí que fazer a triagem através da Linha Saúde 24, um conselho repetido até à exaustão pelas autoridades de saúde, tenha sido uma prioridade. Na altura acreditava, com base em declarações da directora-geral da Saúde, que aquela hora da noite a que liguei seria um período de menor procura da linha.
Mas a experiência não mostrou isso. Por volta das 3h consegui novamente que a linha pública me atendesse no módulo automático. Mas de nada valeu, porque de novo fiquei a aguardar pelo atendimento pessoal, do qual acabei por desistir já perto das 4h. Decidi ir dormir. A minha filha acordou-me antes das 6h30 e o meu desígnio pelo despiste da Saúde 24 voltou a tomar forma. E nova saga. Do telefone de casa liguei novamente para a Saúde 24, que durante mais uma hora me colocou de novo em espera. A chamada caiu outra vez quando ultrapassei a hora de espera e voltei a tentar ligar, já sem esperança de qualquer sucesso.
Azar dos azares, soube mais tarde, alguém da Saúde 24 tentara contactar-me às 6h24 para o meu telemóvel pessoal, que associo habitualmente aos contactos para aquela linha, da qual sou uma cliente habitual e genericamente satisfeita. Mas o destino fizera com que naquela noite, a de quarta para quinta-feira, o telemóvel tivesse ficado a arranjar, o que me impediu de atender o telefone. Mas isso só comprovei muito mais tarde e em nada me ajudou na manhã de quinta-feira.
Enquanto esperava comecei a mandar mensagens para obter informações mais precisas sobre a data da viagem da minha prima a Itália. E remeti um SMS ao pediatra dos meus filhos, que vive próximo de mim.
Num contacto que estabeleci nessa manhã bem cedo fiquei a saber uma informação que nada me tranquilizou. O marido da minha prima que estivera em Itália estava doente com dificuldades respiratórias e, apesar de não ter feito o teste da covid-19, temia estar infectado. Seria irrelevante saber que a minha filha dormira em casa desses meus primos uns dias antes?
Tornava-se mais premente obter respostas. E, das várias conversas mantidas nessa manhã, saíram duas decisões: iria levar a minha filha a um médico ou pedir a um clínico que fosse observá-la a casa, e queria também que ela fosse sujeita ao teste da covid-19. De repente lembrei-me que tinha uma linha de saúde privada, fornecida pela minha seguradora, que me poderia ajudar. Assim foi. Liguei e logo uma enfermeira atendeu. Não me quis dar conselhos, mas garantiu-me que uma médica me contactaria em breve. Menos de uma hora depois uma pediatra ouvia o meu relato e concordava com a decisão que entretanto tomara. Levaria a minha filha a uma urgência pediátrica pública. Nessa altura, desconhecendo os protocolos de actuação em casos suspeitos do novo coronavírus, acreditava que nesse hospital poderiam testar a minha filha para a covid-19. Já a caminho do hospital, o pediatra dos meus filhos liga-me e concorda que há muitas coincidências na história e que nada como tirar teimas.
Saio tranquila de casa sabendo que mesmo que a minha filha tivesse a covid-19 a doença teria poucos efeitos nela ou em mim. Tal não retirava uma vírgula à importância de seguir as recomendações das autoridades de saúde e por isso mesmo levámos cada uma máscara colocada, uma imposição que vendi à minha filha em jeito carnavalesco. Queria fazer o teste também por ela, mas essencialmente devido à taxa de mortalidade da covid-19 a partir dos 60 anos. Não podia ignorar que tinha duas pessoas com alguma idade a viver em nossa casa.
Cheguei ao hospital e percebi que queriam mandar-me para uma sala de isolamento. Mas houve uma certa hesitação sobre onde seria a mesma. Depois de dois minutos nos corredores, lá nos remeteram para um pequeno gabinete, onde esperámos 15 minutos. Nessa altura, entra na sala uma médica – com aqueles fatos que nos levam a embarcar em imaginários espaciais – a empurrar um aparelho que deduzi ser um purificador de ar, que teimava em não querer ser ligado à electricidade. Ultrapassado o primeiro obstáculo, sinto o nervosismo da médica no tom com que me pede para manter a distância de segurança e dá uma reprimenda à minha filha, uma “adulta” de cinco anos, que não sabia colocar devidamente a máscara. Respiro fundo e lá começo a contar a história toda. A médica observa a minha filha e confirma que os sintomas são suaves. Diz-me que para poderem fazer o teste da covid-19 à minha filha o caso teria que ser validado como suspeito, o que só poderia ser feito de duas formas: ou através de uma linha de apoio aos médicos ou através da comissão de infecciologia do hospital. Tento distrair a minha pequenita enquanto a médica tenta desesperadamente encontrar interlocutor. Telefonemas e mais telefonemas e não consegue falar com ninguém. A pediatra começa a exaltar-se ao telefone resmungando com o facto de, aparentemente, não se conseguir contactar a responsável da comissão de infecciologia. Mais de meia hora e múltiplas tentativas depois, lá consegue o tão desejado contacto. Resume a história da minha filha ao telefone e rapidamente obtém um veredicto: não validado! Isto porque os sintomas são suaves e o “rasto epidemiológico” que descrevi não apontaria para o contacto com qualquer caso confirmado.
Digo que discordo da decisão e que basicamente, na minha modesta opinião, o protocolo adoptado pelas autoridades está a levar a uma subnotificação dos casos. Mas admito que essa decisão se fundamente numa limitação objectiva, já que há vários dias ouvira uma colega explicar que faltam reagentes para fazer os testes e, por isso, as autoridades de saúde estão a restringi-los ao máximo. A verdade é que as limitações não se alargam ao privado, como comprovarei mais tarde. Com base em múltiplos artigos que lera na imprensa nacional e internacional, o meu marido já antes me alertara para o facto de em Portugal estarem a ser feitos muito poucos testes por mil habitantes, o que obviamente condiciona em baixa os números de casos positivos. Testar dezenas de milhares de pessoas, como alguns países estão a fazer, permite detectar muitos mais casos positivos do que quem testa muito menos pessoas. Outra evidência da subnotificação é o facto de a percentagem de testes positivos entre o total de testes realizados em Portugal ser bem maior do que na maioria dos outros países, o que parece apontar para uma restrição excessiva dos exames. Será isso uma estratégia para dar mais tempo às autoridades para prepararem as pessoas para a disseminação da doença e para terem mais tempo de organizar logisticamente a resposta à crise?
A médica que nos atendeu diz que percebe a minha posição e concorda comigo. Antes de sair da sala, lança que se estivesse na minha posição também faria o teste no privado.
Saio do hospital directamente para um dos pouco laboratórios que faziam o teste. Quando lá chego cruzo-me com uma outra mãe, que leva pela mão uma criança da faixa etária da minha filha, um menino que estava com febre. Nenhum deles levava máscara. A mãe explica-me que vivem em Madrid numa zona onde houve casos positivos.
A chegada ao laboratório mostrou-se bem atribulada. Quando entramos, as funcionárias pedem-nos que não nos aproximemos. Ninguém tem máscaras, nem luvas, nem desinfectantes, materiais que hão-de aparecer enquanto ainda estamos lá. Há um nervosismo evidente. Uma responsável queixa-se que está há mais de 24 horas a trabalhar de forma ininterrupta. E que é preciso ter cuidado porque, na ânsia de saber se estamos infectados, podemos, de facto, contaminar-nos. Compreendo o argumento e tento limitar os contactos entre os miúdos, o que entre duas crianças pequenas não é fácil. Fico com a impressão de que o nervosismo se suporta, em parte, pelo facto de ali já terem sido detectados casos positivos.
Esperamos com os miúdos num corredor. A responsável do laboratório exige-me uma requisição que não levei. Explicam-me que a posso conseguir por e-mail, o que faço. A colheita corre bem e nota-se o cuidado de todos, nomeadamente do pessoal de limpeza que garante que, após cada colheita, a sala de espera onde estivemos isolados e a sala da recolha sejam minuciosamente desinfectadas.
Quando saímos do laboratório, já passa das duas da tarde. Nessa altura o cenário à nossa volta mudara. Há um biombo a separar os clientes que queriam fazer o teste da covid-19 e os restantes. As funcionárias que atendem o público têm todas máscaras e luvas. Há desinfectantes espalhados pela sala. Antes de sairmos ainda ouvimos uma funcionária a explicar a uma cliente que, se quiser fazer o teste, terá de esperar dois dias. A agenda está cheia e as excepções só existem para quem apresenta sintomas de maior gravidade. As crianças também gozam de um regime especial do qual acabamos por beneficiar. Pago 150 euros e pergunto se já houve testes positivos. Dizem-me que ali foram detectados pelo menos dois. Saio cansada, nervosa, mas com o sentido do dever cumprido. O desfecho ao futuro pertence.