“É possível amarmo-nos, conhecermo-nos, colaborarmos e odiarmo-nos por via virtual”

A covid-19 está a desviar uma parte significativa da vida para o mundo virtual. Despido da capa moralizadora do VIH, o SARS-Cov-2 é tanto mais assustador quanto democrático. E transporta consigo o potencial de transformar radicalmente a forma como nos organizamos socialmente.

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KACPER PEMPEL/Reuters

Quando ordenou o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais na Itália, à excepção de farmácias, quiosques e supermercados, o primeiro-ministro, Guiseppe Conte, justificou tal medida com uma frase que ficou perdida no meio do seu discurso: “Em breve vamos poder voltar a abraçar-nos.” Até lá, os costumes quotidianos e de socialização afectiva ficam suspensos na vida dos cidadãos obrigados a recolherem a casa por força de um vírus que promete reforçar o que já estava a acontecer antes e que é, sublinha o historiador Manuel Loff, “desviar uma parte significativa da vida afectiva para o mundo virtual”.

“A frase de Conte é bonita e arrepiante ao mesmo tempo porque, de facto, as pessoas não sabem quando é que se vão poder voltar a abraçar”, nota o historiador. Tal como nos anos 80 o VIH refreou o relacionamento físico com o outro, numa paranóia agravada pela demora até se descobrir a via de contágio e que deixou as pessoas a acharem que a sida se transmitia por se abraçarem e por se beijarem, o SAR-Cov-2 vai fazer com que as pessoas transponham (ainda mais) as relações sociais para o mundo virtual. “É possível amarmo-nos, conhecermo-nos, colaborarmos e odiarmo-nos por via virtual e evidentemente insultarmo-nos. Isto não é novo. Só sai reforçado. E a conclusão seguinte é que é efectivamente possível transformarmos radicalmente a nossa sociabilidade e os nossos afectos”, diz ainda Manuel Loff.

O facto de muita mais gente passar a trabalhar a partir de casa pode comportar, na óptica do economista Luís Aguiar-Conraria, ganhos que perdurarão para lá da pandemia. “Para poderem trabalhar em casa, as pessoas estão a receber formação sobre ferramentas que já estavam disponíveis mas que boa parte de nós nem sabia que existiam. E pode acontecer que abandonemos de vez o hábito cultivado de ter de ir à empresa e da hora de entrada e de saída, nas funções em que isso é possível”, perspectiva, apontando os respectivos “ganhos climáticos”.

Para lá das rotinas de trabalho e de sociabilidade, a epidemia está a acordar medos atávicos em sociedades que, apoiadas na tecnologia, se criam capazes de esconjurar a angústia da morte. “A morte deixou de estar tão longe. E, no imediato, isso muda desde logo a nossa relação com o outro e com o nosso próprio corpo. Faz com que o nosso corpo, que é o nosso investimento estético e de prazer por excelência, se retraia um pouco e deixe de ser a nossa âncora. Pusemo-nos todos a ler sintomas, porque tossimos ou a garganta começou a doer”, enumera Albertino Gonçalves, sociólogo e professor catedrático na Universidade do Minho, para lembrar que, ao contrário do que se verificou nos anos 80 com o VIH, “que foi visto pela lupa moral dos que o encararam como uma espécie de castigo pelos maus-costumes”, no SARS-Cov-2 “somos todos inocentes e indefesos”.

O novo coronavírus presta-se a esta pandemia do pânico porque é novo, a sua origem não está definitivamente esclarecida, ainda não tem vacina, cria incertezas. As notícias sobre a venda de máscaras na Amazon a preços que mais fazem lembrar um leilão da Sotheby’s, como comparava há dias a jornalista do El Pais María Fernández, e de que a Índia, que é o maior fornecedor de medicamentos genéricos do mundo, decidiu restringir as exportações de paracetamol, também contribuem para aprofundar o medo. E, por cá, por mais irracional que isso possa parecer, o medo é a origem do que “se vê nos supermercados onde um espirro é olhado como uma ameaça e as pessoas estão a abastecer-se para três meses”.

A par do medo, o SARS-Cov-2 está a recuperar noções antigas de casa. “Tornou-se um canto muito importante, com quarentena ou sem quarentena, o porto mais seguro em que podemos estar. E nós não tínhamos já esta ideia de casa-abrigo; a casa era um lugar que fazia a ponte entre um dia e o outro, um lugar e o outro”, retoma o sociólogo. Mas, ao contrário do vírus, Albertino Gonçalves considera que os condicionamentos pelo medo têm os dias contados. “Somos feitos de tal maneira que, mesmo nas circunstâncias mais graves, conseguimos recuperar o humor e a vida social. Basta lembrarmo-nos da guerra no Líbano, nos anos 70: nunca se fizeram tantas festas e tantos bailes como durante a guerra. E o que me parece é que, apesar da consciência acrescida sobre as vulnerabilidades do corpo e do medo do outro, habituar-nos-emos.”