Famílias em isolamento, dia 1: “Uma pessoa nunca está preparada para isto”
Famílias com crianças entram agora num mundo relativamente desconhecido, o de terem de conviver 24 horas por dia, durante muitos dias, no mesmo espaço. Fazem-se estratégias para não enlouquecer, repetem-se os motivos: afinal, isto é por um bem maior.
Um dos filhos de Adélia Gaspar começou por esfregar as mãos de contente. “Ó mãe, então se a escola fechar podemos ir à praia”, rejubilou o rapaz de 16 anos assim que soube que a escola ia suspender as avaliações. Foi algures no princípio da semana. Os pais refrearam-lhe as vontades e, depois disso, ainda antes de o Governo decretar o fecho das escolas a partir de segunda-feira, decidiram isolar toda a família em casa.
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Um dos filhos de Adélia Gaspar começou por esfregar as mãos de contente. “Ó mãe, então se a escola fechar podemos ir à praia”, rejubilou o rapaz de 16 anos assim que soube que a escola ia suspender as avaliações. Foi algures no princípio da semana. Os pais refrearam-lhe as vontades e, depois disso, ainda antes de o Governo decretar o fecho das escolas a partir de segunda-feira, decidiram isolar toda a família em casa.
O adolescente, como é próprio, foi o mais revoltado. “A resposta que ele me deu logo foi que era o único preso em casa e os outros andavam a passear. Eu disse-lhe ‘cabe-te a ti sensibilizá-los, que expliquem aos pais’”, conta Adélia. Com outros dois filhos mais novos, de 11 anos, esta mãe de Lisboa não sentiu grande dificuldade em explicar-lhes porque é que estavam a adoptar uma medida tão pouco comum. Ao rapaz mais velho foi complicado. “São idades difíceis de consciencializar. Se não houver algum acompanhamento adulto e consciente, eles perdem-se”, comenta.
Adélia Gaspar e o marido tomaram a decisão na quarta. Têm familiares em Macau, acompanharam a situação da covid-19 por lá e começaram a pensar que, por cá, medidas mais robustas podiam ainda tardar. Na quinta-feira, já nenhum dos filhos foi à escola e os pais passaram a trabalhar a partir de casa. Adélia lembrou-se então de criar um grupo de Facebook para partilhar a experiência do seu isolamento voluntário. Destinava-se sobretudo a amigos e familiares, mas tem já mais de 350 mil membros.
O volume de gente que aderiu surpreendeu esta ex-gestora de recursos humanos que estava agora a estagiar para ser advogada. “Uma coisa é nós fazermos por nós e estarmos neste isolamento voluntário, outra coisa é termos apoio nacional”, explica. “Tentei com esse grupo não só sensibilizar para a questão, como ir partilhando informação pertinente e fidedigna. A informação é tanta, tão dispersa”, desabafa.
Um mundo por desbravar
A meio da semana passada, quando o número de infectados pelo novo coronavírus em Portugal chegou rapidamente às várias dezenas, algumas famílias fecharam-se em casa dispostas a isolar-se totalmente durante pelo menos 14 dias ou a sair apenas em casos de necessidade absoluta. Foi o que fizeram Adélia, Norberto, Francisca e José Pedro, com quem o PÚBLICO falou a propósito destes primeiros dias de confinamento. Criar rotinas, diversificar actividades e ter disciplina são estratégias para resistir tanto tempo em casa sem enlouquecer, mas é todo um mundo novo para desbravar.
“Não sei se estou preparada”, ri-se Francisca Ramalhosa. “Vai ser um desafio para toda a família, uma aprendizagem”, diz a directora municipal de Mobilidade da Câmara de Lisboa, que com o marido e as três filhas iniciou o isolamento na sexta-feira.
Foi também nesse dia que Norberto Ribeiro, investigador da Universidade do Porto e pai de três filhos, se privou voluntariamente de ir à rua. “Vamos manter-nos em casa e com o menor contacto com as outras pessoas”, garante, expressando a incógnita que é comum às quatro famílias. “Uma pessoa nunca está preparada para estas coisas e nós vamos passar por isto agora, mas a minha expectativa é que não corra assim tão mal.”
Norberto tem, ainda assim, uma sorte que não assiste a muitos. A sua família vive numa casa com jardim na fronteira entre Paços de Ferreira e Paredes. “Aqui não é como nos grandes centros. Passa pouca gente na rua. Posso jogar à bola com os meus filhos no jardim ou ir dar uma caminhada no monte onde, quase de certeza, não me vou cruzar com ninguém”, relata.
Até porque, com filhos de três, oito e dez anos, uma das dores de cabeça deste pai (e dos outros…) é inventar formas de afastar as crianças dos aparelhos electrónicos. “Não queremos que eles fiquem 12 horas agarrados ao tablet ou ao telemóvel”, assume. Pode ser difícil. “Já havia a disciplina de que os gadgets era só ao fim-de-semana e agora estando em casa 24 horas é difícil esquecerem-se que não estão de fim-de-semana”, diz Francisca Ramalhosa, com filhas de oito, cinco e um ano.
José Pedro Amorim, docente universitário que mora em Vila Nova de Gaia, fez uma negociação com os filhos de dez e 14 anos: “Igual número de horas de leitura e de horas a jogar ou a ver vídeos no YouTube. Se pudessem fazer o que lhes dá na real gana acho que estariam sempre agarrados aos gadgets. É um gosto pela leitura algo imposto, mas se ele não é espontâneo temos de fazer algum condicionamento.”
Ir à varanda e à Internet
A decisão de se isolarem mais cedo do que a generalidade dos portugueses e até antes de o Governo adoptar medidas mais restritivas foi mais fácil para estas famílias porque todas, ou quase, têm possibilidade de trabalhar a partir de casa. José Pedro está a experimentar dar aulas à distância pela primeira vez, Francisca faz reuniões por Skype e emite despachos virtualmente, Norberto já está habituado ao teletrabalho e Adélia, mesmo com o estágio de advocacia suspenso, continua a desempenhar tarefas.
O que ficou “praticamente sem actividade” foi o alojamento local que Adélia Gaspar e o marido gerem. “Caiu a pique. Se já estava mal, caiu a pique. Temos tido muitos cancelamentos e estamos a ponderar comunicar àqueles que ainda não cancelaram que as coisas mudaram em Portugal e que a maior parte dos museus e monumentos está fechada”, relata. É menos um rendimento com que a família conta, mas tem também um lado positivo: cortam-se as deslocações para fazer limpezas ao alojamento turístico.
Ficar em casa é o objectivo de todos, mas apenas José Pedro Amorim diz estar plenamente preparado para aguentar “durante duas ou três semanas” sem ter que pôr o pé para lá da umbreira da porta. “Nós não saímos mesmo. Não fomos ao supermercado comprar centenas de rolos de papel higiénico, mas tentámos programar as coisas para que tivéssemos o necessário para estas semanas”, expõe o investigador universitário, orientado pela máxima de “deixar a rua e o espaço público para as pessoas que têm mesmo de circular”. “Isto é tudo um jogo de probabilidades. Não somos imunes, ninguém é, mas trata-se de reduzir a probabilidade de contágio.”
Sem a sorte do jardim de Norberto Ribeiro, José Pedro e Adélia socorrem-se das varandas para manter algum contacto com o exterior, apanhar sol e ar puro. Francisca pondera “de vez em quando ir à rua só apanhar ar. Subir e descer a rua, dar a volta ao quarteirão.”
De resto, a vida próxima estará confinada a quatro paredes. E à Internet, claro. É através dela que os adultos poderão trabalhar e espairecer; será também ela a permitir que as crianças continuem a estudar. Norberto diz que a escola dos seus filhos “já começou a enviar trabalhos de casa” e está a fazer um esforço para “adaptar-se a esta realidade”, facilitando o ensino à distância. “Felizmente temos a possibilidade de eles poderem ligar-se a partir de casa”, comenta José Pedro Amorim, notando que “não temos a totalidade da população portuguesa com dispositivos e acesso à Internet generalizada”.
Adélia sublinha a necessidade de estabelecer regras e não quebrar totalmente as rotinas. “Isto não são férias, não vamos poder sair de casa e vamos ter de conviver uns com os outros durante 24 horas. As regras são essenciais.” José Pedro Amorim concorda: “Se mesmo para gente adulta isto é, de facto, uma situação muito excepcional, uma situação inédita nas nossas vidas, para crianças e jovens ainda se tornará mais difícil de compreender. Esta privação da liberdade habitual é complicada e estamos a planear algumas actividades, porque o não ter nada para fazer é ainda mais complicado.”
“Mantemos minimamente as horas para acordar, para a higiene, para as refeições e para deitar. Não tão rígido, não tão cedo, mas tentamos que seja um horário equilibrado para ver se não perdemos a sintonia com a sociedade lá fora”, relata Adélia Gaspar. E sai-lhe a frase que talvez julgasse nunca ter de dizer: “Daqui a um mês havemos de sair.”