As cicatrizes do medo
O mundo que emergirá após a crise do coronavírus poderá ainda reforçar mais a tendência para soluções políticas que privilegiam soluções autoritárias e unilateralistas
Não há certamente muito a estranhar quando o primeiro instinto no combate à pandemia da covid-19 por parte de lideranças como a de Donald Trump ou Vladimir Putin é o encerramento de fronteiras. Está na matriz do populismo este “nós contra eles”, que assume diversas formas e uma delas é marcadamente a do nacionalismo proteccionista como panaceia para todos os males.
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Não há certamente muito a estranhar quando o primeiro instinto no combate à pandemia da covid-19 por parte de lideranças como a de Donald Trump ou Vladimir Putin é o encerramento de fronteiras. Está na matriz do populismo este “nós contra eles”, que assume diversas formas e uma delas é marcadamente a do nacionalismo proteccionista como panaceia para todos os males.
Como não será também estranho ver no desprezo com que a presidência dos Estados Unidos lidou em primeira instância com a dimensão da ameaça, os sinais da rejeição do saber da ciência, que tanto dano tem provocado a uma outra prioridade da humanidade, as alterações climáticas.
O recuo em toda a linha a que Trump foi obrigado passados poucos dias pode fazer sorrir muita gente e tem levado até alguns comentadores a considerar que diminuirá as suas possibilidades de reeleição, ao revelar, perante uma situação de crise, a sua incapacidade para liderar. Mas a verdade é que o mundo que emergirá após a crise do coronavírus poderá ainda reforçar mais a tendência para soluções políticas que privilegiam soluções autoritárias e unilateralistas.
Desde logo, a ideia de que o vírus se espalha com facilidade por vivermos uma globalização sem fronteiras, como se as pandemias de outrora respeitassem as linhas do mapa e não fosse a maior facilidade de mobilidade o acelerador do fenómeno. Depois, a ideia de que um regime autoritário como o chinês está mais bem apetrechado para combater uma epidemia deste género, o que até pode ser verdade – embora os números chineses devam ser recebidos com reserva –, mas nunca deveria ser suficiente para nos fazer abdicar da liberdade e garantia de direitos que representa a democracia.
Depois há a óbvia incapacidade de os organismos multilaterais serem os verdadeiros protagonistas desta situação, mesmo que ela tenha contornos globais, porque a verdade é que neste mundo em construção os Estados-nação continuam a ser as entidades em que os cidadãos se revêem e para quem se voltam em momentos de crise. A União Europeia ainda pode ter uma palavra a dizer, mas os primeiros sinais não são animadores.
As cicatrizes que o medo irá deixar nas comunidades serão determinantes no nosso futuro colectivo. Uma crise é sempre reveladora das nossas fraquezas e das nossas capacidades. A margem para acreditar que as segundas prevalecerão sobre as primeiras é muito curta, mas não devemos esquecer que o medo quase nunca é bom conselheiro.