Síria: o país em farrapos saiu há nove anos à rua para desafiar Assad
Um dos mais complexos e mortíferos conflitos deste século, que originou uma crise humanitária gigantesca e desfigurou todo um país, começou com um grupo de jovens a pedir a “queda do regime” sírio. Hoje ainda caem bombas sobre Idlib.
“O povo quer a queda do regime”. Nunca uma frase teve tanta importância na História de um país como esta teve para a Síria, imortalizada por um grupo de jovens de Deera. Quinze dias depois de estas palavras terem sido grafitadas num muro de uma escola naquela cidade, a Sul do território, milhares de pessoas saíram à rua para tentarem ser protagonistas da sua própria Primavera Árabe, empolgadas pelo que ouviam e viam na Tunísia, no Egipto e na Líbia.
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“O povo quer a queda do regime”. Nunca uma frase teve tanta importância na História de um país como esta teve para a Síria, imortalizada por um grupo de jovens de Deera. Quinze dias depois de estas palavras terem sido grafitadas num muro de uma escola naquela cidade, a Sul do território, milhares de pessoas saíram à rua para tentarem ser protagonistas da sua própria Primavera Árabe, empolgadas pelo que ouviam e viam na Tunísia, no Egipto e na Líbia.
Nove anos depois, a guerra que se lhe seguiu e que ainda prossegue, fez mais de 380 mil mortos, quase 200 mil desaparecidos, 5,7 milhões de refugiados, seis milhões de deslocados internos e uma disrupção política, social e humanitária sem precedentes.
A duração e a crescente complexidade do conflito sírio, que ao longo das suas várias etapas assistiu a uma multiplicação dos actores envolvidos, a constantes mudanças no mapa do quem-controla-o-quê e a incontáveis redefinições das prioridades estratégicas e militares – a que se somaram os efeitos políticos da crise dos refugiados para além das fronteiras da Síria e as imagens de destruição, morte e miséria extremas, bombeadas diariamente nas redes sociais e nos sites dos principais meios de comunicação – quase fizeram esquecer a origem.
Mas ano após ano, lá chega o dia 15 de Março para nos relembrar que uma das grandes batalhas do século XXI no Médio Oriente começou com gente comum, nas ruas, primeiro em Deraa e em Damasco, mais tarde um pouco por toda a Síria, a exigir liberdade e democracia a um poder repressivo e opressor, e a pedir soluções contra a corrupção, a pobreza e a desigualdade crescentes no país.
À insolência dos miúdos de Deraa, Bashar al-Assad respondeu com o que de mais tirânico o regime, que herdou do pai, Hafez, tinha para oferecer: a detenção e a tortura. A resposta descomedida das autoridades contra os jovens acabou por ser o catalisador de uma ampla onda de contestação, mobilizada e alimentada através das redes sociais, que, também ela, foi brutalmente reprimida por Assad e pelo seu Exército, com milhares de assassínios e detenções, em várias cidades sírias.
Para quem saiu à rua para desafiar o regime, o dia 15 de Março de 2011 marca, por isso, o início da revolução. Para o Palácio Presidencial de Damasco, no entanto, foi o início da desobediência. Para todos, sem excepção, o início da guerra civil.
Cidade virou grito de revolta
De nome de cidade mártir, “Deraa” transformou-se em grito de revolta social durante os meses que se seguiram ao levantamento contra Assad. E quando muitos manifestantes pegaram nas armas e desafiaram o regime, também com violência, tomando o poder ao Exército em diversas regiões do país, a Síria virou uma manta de retalhos.
Os protestos deram lugar, num primeiro momento, a um conflito armado entre as forças leais ao Presidente sírio e os grupos rebeldes que se amotinaram em Idlib, Alepo, Homs, Deir Ezzor ou Hama. E como tantos outros teatros de guerra no Médio Oriente, também este contou com a intervenção, indirecta nessa primeira fase, de potências estrangeiras: Rússia e Irão armaram e financiaram Assad, Estados Unidos e Turquia fizeram o mesmo com os revoltosos, e Arábia Saudita, Qatar, Israel, Reino Unido e França, entre outros juntaram-se, num ou noutro momento, ao jogo sírio.
A perda de poder efectivo do Governo sobre várias regiões e localidades da Síria, acabou por atrair grupos fundamentalistas religiosos para o conflito. Jihadistas e antigos combatentes de organizações próximas da moribunda Al-Qaeda juntaram-se e infiltram-se nos territórios rebeldes, juntando à liça deles a sua própria causa islamista sunita, contra a minoria alauita xiita, à qual pertence Bashar al-Assad e a sua família.
E do vazio de poder no enorme deserto que juntava a Síria, em guerra, e o vizinho Iraque, em pós-guerra, nasceu o grupo terrorista que se quis confundir com um Estado soberano: o Daesh. A sua expansão territorial, alimentada pelos lucros da exploração petrolífera, permitiu a imposição de um estilo de vida social, político e religioso assente numa interpretação restritiva e fundamentalista da sharia (lei islâmica) em algumas das mais importantes e históricas vilas e cidades sírias. E mudou a natureza da guerra.
Reino Unido e França juntaram-se aos EUA para bombardear o novo inimigo – que atraiu mais de 40 mil jihadistas de 80 países diferentes e reivindicou ataques terroristas em várias cidades europeias – e o Iraque juntou-se à coligação internacional. Milícias curdas – sírias, iraquianas e turcas – avançaram também contra o Daesh, no Norte da Síria, e a Turquia aproveitou a investida para bombardear terroristas e afastar, ao mesmo tempo, os inimigos curdos de cidades-chave, junto à fronteira e no Curdistão turco.
Quem mais beneficiou desta desarrumação territorial foi o Governo sírio. Fortemente respaldado pela Força Aérea russa, denunciado por organizações internacionais pelo uso de armas químicas e bombardeamentos de hospitais, escolas e habitações civis, avançou pela região Oriental do país e foi tomando cidades à oposição, em nome da “luta contra o terrorismo”.
Com o Daesh aniquilado há cerca de um ano e os EUA e seus parceiros já retirados da Síria, Assad avançou com uma ofensiva final sobre os enclaves rebeldes na região de Idlib, onde se joga, por estes dias, o desfecho da guerra. Um fim que se acredita próximo, mas que é tudo menos certo, com o redobrar dos esforços da Turquia no apoio aos encurralados.
Nove anos volvidos do levantamento popular, sobra muito pouco da Síria de 2011. Cidades inteiras viraram escombros, milhões de habitantes já lá não moram, as prisões estão cheias de opositores e a economia está de rastos. E, por isso, também as reivindicações dos sírios que saíram à rua perderam validade, em detrimento de algo tão básico com a sobrevivência. Quando Assad vencer de vez, ainda haverá forças para retomar “Deraa”?