Desvendados segredos da bactéria E. coli no labirinto dos intestinos
Equipas do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, descobriram dois mecanismos da Escherichia coli relacionados com o envelhecimento e a competição por nutrientes.
Os intestinos podem ser um autêntico labirinto. Lá, existem diferentes compartimentos, onde se compete por espaço, por nutrientes ou tem de se lidar com inflamações. E quem melhor do que cientistas para enveredarem por esses caminhos e tentarem desvendar os segredos dos microrganismos dos intestinos? Desta vez, ao entrarem nessa encruzilhada, investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, descobriram dois mecanismos da bactéria Escherichia coli. Por um lado, viram que a evolução desta bactéria pode tornar-se patogénica na população idosa e, por outro, que o seu metabolismo difere se estiver sozinha ou acompanhada.
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Os intestinos podem ser um autêntico labirinto. Lá, existem diferentes compartimentos, onde se compete por espaço, por nutrientes ou tem de se lidar com inflamações. E quem melhor do que cientistas para enveredarem por esses caminhos e tentarem desvendar os segredos dos microrganismos dos intestinos? Desta vez, ao entrarem nessa encruzilhada, investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, descobriram dois mecanismos da bactéria Escherichia coli. Por um lado, viram que a evolução desta bactéria pode tornar-se patogénica na população idosa e, por outro, que o seu metabolismo difere se estiver sozinha ou acompanhada.
Em 2014, percebeu-se pela primeira vez que a E. coli desenvolvia mutações genéticas de forma rápida no seu hospedeiro, conta-se num comunicado do IGC sobre os dois artigos agora publicados na revista científica Current Biology sobre os segredos da bactéria. Surgiram assim perguntas que deram origem a novos trabalhos: qual a influência do envelhecimento do hospedeiro na bactéria? Quais as influências de outras espécies de bactérias nela?
Comecemos por responder à primeira questão. A equipa de Isabel Gordo quer entender como evoluem bactérias. Como se sabe que o envelhecimento pode contribuir para mudanças na genética e composição desses microorganismos, introduziu-se a E.coli nos intestinos de ratinhos jovens e nos de outros mais velhos para se ver como a bactéria evoluía. Em apenas um mês, viu-se que a E. coli adquiria mutações genéticas capazes de se adaptarem ao stress do intestino inflamado dos ratinhos mais velhos.
“Observámos [nos ratinhos mais velhos] a ocorrência de mutações em genes do genoma da E. coli que estão envolvidos em características de patogenicidade, como alterações de mobilidade e resposta a stress”, explica ao PÚBLICO Isabel Gordo. Desta forma, concluiu-se que a evolução desta bactéria na população mais velha pode torná-la “potencialmente patogénica e aumentar o risco de doenças”, como a doença de Crohn.
Este é o primeiro estudo que caracteriza o processo de evolução de uma bactéria em intestinos envelhecidos. “Contribuirá para uma investigação futura mais exaustiva sobre a contribuição que este processo possa ter nas mudanças do microbioma e na saúde dos idosos”, adianta a cientista. A sua equipa pretende agora começar a estudar a evolução da E. coli em animais muito mais velhos e com intestinos inflamados. Inicia-se assim uma nova investigação focada no estudo destes mecanismos em pessoas com doenças inflamatórias dos intestinos.
Sozinha e acompanhada
Já a equipa de Karina Xavier quis saber como é que a E. coli actua, por um lado, sozinha e, por outro, acompanhada por outras bactérias. Para isso, a sua equipa começou por introduzir a bactéria sozinha em ratinhos. Viu-se então que era uma boa colonizadora, ganhava bastante espaço no seu meio e consumia aminoácidos. “Ao fim de um mês de colonização, sequenciámos o genoma da E. coli e observámos que quando estava sozinha acumulava mutações genéticas num gene envolvido no consumo de aminoácidos”, relata ao PÚBLICO a investigadora. Observou-se ainda que essas mutações faziam com a bactéria consumisse de forma mais eficiente serina – o seu aminoácido preferido.
Se estivesse acompanhada por outra bactéria – neste caso, a Blautia coccoides – as alterações genéticas da E. coli ocorriam de forma mais acelerada. Isto é, há competição pelos nutrientes disponíveis e a E. coli passa a “alimentar-se” de nutrientes que só passam a estar disponíveis quando há outras bactérias envolvidas. “[Verificou-se que], na presença de outros membros da microbiota, a E. coli consome preferencialmente açúcares simples que são libertados por outros membros da microbiota”, explica Karina Xavier.
Há assim uma relação de interdependência: enquanto a E. coli só consome açúcares simples, os membros mais abundantes conseguem alimentar-se de fibras diatéticas. Mas a E. coli só tem acesso a esses açúcares simples quando são libertados como produtos do metabolismo das fibras pelos membros mais abundantes. “Estes resultados revelam uma rede metabólica entre a E. coli e os membros mais abundantes da microbiota.”
Karina Xavier refere que, em conjunto com os estudos de Isabel Gordo, o seu trabalho demonstra que os micróbios que habitam no nosso corpo podem evoluir de forma rápida e ter alterações genéticas com consequências metabólicas, nomeadamente a competição por nutrientes. E, se na investigação de 2014 se julgou que o sistema imunitário do hospedeiro teria um papel mais relevante na evolução da E. coli, agora surgem novas informações: “O trabalho que agora publicamos mostra que as interacções metabólicas com a microbiota são mais importantes nesse processo do que o sistema imunitário”, assinala a investigadora.
A partir destas descobertas, o grupo de Karina Xavier está a investigar a evolução dos membros da microbiota em condições de dietas extremas, como as que são ricas em gorduras e açúcares processados comparativamente às dietas ricas em fibras. “Os nossos dados preliminares comprovam a previsão de que dietas extremas afectam não só a composição da microbiota, mas também os genes e as funções dessas bactérias, tornando as consequências de dietas desequilibradas mais difíceis de reverter”, comenta a cientista. A dieta do hospedeiro poderá influenciar “de uma forma irreversível” a sua microbiota e ter consequências na perda de funções benéficas que a comunidade bacteriana tem no bem-estar do hospedeiro. Portanto, as incursões no labirinto dos intestinos continuarão.