O poder judicial em crise: os riscos
Este é um problema da República, que tem de ser encarado como tal e que não resolve com um simples lavar de mãos ou com uma qualquer solução desinfectante.
1. Há mais de vinte anos que escrevo, nos jornais e fora deles, sobre o estatuto do poder jurisdicional nas democracias liberais. Na transição do século, era já evidente que, nas sociedades marcadas pela globalização e digitalização, o papel do poder judicial estava em “expansão”, por se ter operado um enfraquecimento do eixo regulador “legislativo-executivo”. E quanto mais importância o poder judicial adquiria, mais urgente se afigurava repensar os pilares das suas legitimidade e responsabilidade.
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1. Há mais de vinte anos que escrevo, nos jornais e fora deles, sobre o estatuto do poder jurisdicional nas democracias liberais. Na transição do século, era já evidente que, nas sociedades marcadas pela globalização e digitalização, o papel do poder judicial estava em “expansão”, por se ter operado um enfraquecimento do eixo regulador “legislativo-executivo”. E quanto mais importância o poder judicial adquiria, mais urgente se afigurava repensar os pilares das suas legitimidade e responsabilidade.
2. Nos anos noventa, esta necessidade era largamente pautada pela experiência italiana, onde a usura dos protagonistas políticos e o desgaste induzido pela máfia e pelo terrorismo conduziram a um primeiro assomo de uma “república dos juízes”. Para quem conhecesse a inabarcável produção académica italiana, não havia propriamente surpresa ou novidade; parecia uma self fullfilling prophecy. Desde os alvores da Constituição de 1947, a doutrina jurídica e, em particular, os processualistas e constitucionalistas haviam estudado profundamente o tema da legitimidade, do estatuto e da responsabilidade dos magistrados. A que acresciam as infindáveis publicações das associações de magistrados e as actas dos respectivos congressos, que explicam razoavelmente a implosão da república que se daria no final da década de 80. Todos os riscos do corporativismo e da entropia do sistema estavam assinalados. Quando faliram as instituições, já só sobrava o braço jurisdicional, que, obviamente, não tinha – como não teve – quaisquer condições para substituir o eixo especificamente político.
Desta experiência e da reflexão que a precedeu podia, porém, concluir-se que a legitimação e a responsabilização do poder judicial não podiam mais fazer-se à maneira oitocentista, numa simples remissão (em larga parte, ficcional) para a vinculação à lei.
3. No início do século XXI, os desafios da globalização e da digitalização originaram uma “desterritorialização” e um “desenraizamento” político-constitucional. A ideia de um mundo sem fronteiras, no plano comercial e ambiental – mas também da saúde pública (como agora se vê) –, reduziu visivelmente a capacidade de resposta do eixo “executivo-legislativo” nacional. Quanto mais desregulada é uma sociedade política – pela retirada ou pelo recuo do eixo regulador “legislativo-executivo” –, mais avulta e ocupa espaço o poder arbitral da instância judicial. As democracias abertas, liberais e globalmente integradas do início do século estavam e estão muito mais expostas à presa do poder judicial do que ao domínio e predomínio de governos e parlamentos. Numa sociedade com menos leis e menos conformação administrativa e executiva, os conflitos só podem ser resolvidos a posteriori na sala dos tribunais. Para usar uma fórmula simplista, mas elucidativa, a que recorri dezenas de vezes: “o século XIX foi o século dos parlamentos, o século XX a centúria dos governos e o século XXI será o século dos tribunais”.
4. Já mais para os nossos anos 10-20 ocorre um desenvolvimento político-constitucional que torna ainda mais urgente a resolução do problema. Em algumas democracias liberais recentes, designadamente no leste da Europa, a ideia de controlo político do poder judicial começa a ganhar terreno. Por um lado, isso confirma a consciência de que o poder jurisdicional cresceu nas sociedades hodiernas, até no processo de pilotagem “político-social” (lato sensu). Por outro lado, isso mostra que não fomos capazes de fazer uma reforma constitucional preventiva, que pudesse ter dotado o poder jurisdicional do reconhecimento e da legitimidade democráticos que o seu novo e acrescido papel postulava. Se na Itália dos anos 80, padecíamos da ameaça de judicialização da política, na Europa dos anos 10-20 soçobramos ante o risco de politização da justiça.
5. É fundamental, pois, que, sem termos os olhos postos na conjuntura, cientes do novo estatuto e papel que cabe ao poder jurisdicional, sejamos capazes de operar uma reforma constitucional da justiça. As gravíssimas suspeitas que inquinaram o sistema de distribuição de processos, nomeadamente no Tribunal da Relação de Lisboa, são apenas um sintoma – ou melhor, uma prova – de que, na era em que estamos, não podemos continuar a viver com um sistema inspirado em postulados do século XIX. A solução não está numa cirúrgica reforma dos órgãos de governo e gestão das magistraturas, embora também haja de passar por aí. Nem numa revisão isolada do sistema de ingresso e progressão na chamada carreira das magistraturas. Nem numa simples alteração – no sentido de abertura e da transparência – dos mecanismos de avaliação do mérito e de averiguação e controlo disciplinar. A reforma necessária passa, global e equilibradamente, por todas essas dimensões e por algumas outras mais.
6. Não podemos, no entanto, diante da gravidade do sucedido, contentarmo-nos com a resposta do Conselho Superior da Magistratura, como se este fosse um problema que se esgota e exaure em sede disciplinar. Este é um problema da República, que tem de ser encarado como tal e que não resolve com um simples lavar de mãos ou com uma qualquer solução desinfectante, seja ela aquosa ou alcoólica. O Presidente da República e o Governo, bem como as oposições, não podem desresponsabilizar-se. Os silêncios prolongados ou os reenvios sucessivos de responsabilidades denotam um indesculpável alheamento. Insisto no que escrevi há quinze dias: a tentação do controlo e a quimera do justicialismo deambulam por aí. Este ambiente é precisamente o terreno pantanoso onde podem medrar. Ser contundente e não pecar por omissão é estar do lado da independência judicial e do robustecimento da legitimidade de um poder, hoje mais capital do que ontem, para a afirmação do Estado de Direito e a sobrevivência e renovação da democracia liberal.
NÃO Ministra da Justiça. Nada contra a ida a programas de humor. Mas é estranho que quem se manteve muda e queda diante do grave escândalo da Relação de Lisboa escolha o humor para dar a cara.
NÃO António Costa. O apoucamento político e até pessoal do líder do maior partido de oposição, na entrevista ao PÚBLICO, revela um sério desnorte e a vontade de crispar ainda mais o debate político.