Na Europa, ao contar de dez
Antes do rosto, Max von Sydow era a voz. Nalguns casos, como em Europa, de Lars von Trier, bastava ela para erguer um filme.
“Agora, vai ouvir a minha voz.”
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“Agora, vai ouvir a minha voz.”
Antes do rosto – ou melhor, depois do rosto, mas antes da “soma” de todos os rostos que encarnou ao longo dos anos – era a voz.
A voz que nos guiava para o interior do pesadelo estilizado de Europa, de Lars von Trier; o hipnotista que, sobre imagens de carris esparsamente iluminados, nos levava ao fundo dos fundos.
A voz de Max von Sydow (1929-2020), com o indefinível mas inconfundível sotaque norte-europeu, um inglês impecável traído aqui e ali por um resquício do sueco natal – que, nas suas mãos, podia ser qualquer outra língua da Velha Europa, do Velho Mundo que o século XX veio desmantelar quase sem darmos por isso. Lars von Trier sabia disso; sabia também que o actor sueco, falecido esta segunda-feira aos 90 anos, trazia consigo toda a carga do homem moderno enfrentando um admirável mundo novo que lhe fazia perguntas para as quais não tinha resposta, e a mística intangível de alguém que atravessou séculos como árvore teimosamente de pé.
Podemos atribuir essa aura de intocável ao trabalho de Von Sydow com Ingmar Bergman, que passou por filmes de época como A Fonte da Virgem e O Sétimo Selo ou contemporâneos como A Hora do Lobo, Morangos Silvestres, A Vergonha ou Luz de Inverno, até hoje modernos. A voz do actor, envolvendo o espectador no mergulho sem regresso na Alemanha de 1945 imaginada por Von Trier, com tanto de sedutor como de sinistro, reflectia a sua classe – no sentido de elegância, de presença, de entrega, de profissionalismo, no sentido de uma integridade que nem as escolhas menos felizes (da malfadada versão do Judge Dredd com Sylvester Stallone, ao oficial nazi de Fuga para a Vitória, ao lado de Stallone ou Pelé) conseguiram comprometer. Judi Dench, numa entrevista em Londres, disse uma vez que não era vergonha nenhuma aceitar um papel: trabalho é trabalho, e os actores são por natureza jornaleiros nómadas. Hollywood, claro, tudo fez para encaixar Max von Sydow nas gavetas que lhe convinham. Mas é aí que entra a tal classe, alardeada quase sem esforço no Exorcista de William Friedkin e nos Três Dias do Condor de Sydney Pollack, no Relatório Minoritário de Spielberg ou em Shutter Island de Scorsese.
Uma classe que resistiu ao tempo e que, talvez por isso, veio trazer uma outra dignidade às suas passagens-relâmpago pela saga Star Wars e pelo fenómeno Guerra dos Tronos, em personagens que reflectiam essa imagem. Max von Sydow era um emblema de uma espécie de nobreza, um resquício do Velho Mundo perdido no Novo Mundo, amarrada à simplicidade modesta do actor para quem não havia personagens menores.
Mesmo que apenas por alguns minutos, a presença de Max von Sydow erguia um filme. No caso de Europa, nem era sequer precisa a presença: bastava a voz.
“A minha voz vai ajudá-lo, guiá-lo cada vez mais fundo até Europa (…). À contagem mental de dez, estará na Europa. Esteja lá às dez.”