A nova “Questão do Oriente”: refugiados, gás natural e imperialismo neo-otomano
As áreas de maior turbulência geopolítica na proximidade Sul/Sudeste da União Europeia, ou até já no seu interior — caso dos Balcãs, incluindo aí a Grécia e Chipre —, mas também a Síria, o Líbano, Iraque, Israel/Palestina e Líbia —, têm todas um ponto de contacto histórico-político comum: são usualmente territórios do antigo Império Otomano onde há sequelas significativas desse passado.
1. O Sudeste europeu e o Mediterrâneo Oriental são um quebra-cabeças permanente para a União Europeia. Não é por um acaso histórico de inícios do século XXI que isso ocorre. Há razões profundas e até fundamentalmente previsíveis para que seja assim. Na realidade, o que estamos a assistir hoje é a um reemergir, sob outras formas, daquilo que na história diplomática europeia do século XIX e inícios do século XX se designava como a ‘Questão do Oriente’. Foi um longo período histórico cheio de conflitos sangrentos cujos marcos convencionais são o tratado entre a Rússia e o Império Otomano de 1774, após a derrota deste último — Tratado de Küçük-Kaijnardja, na actual Bulgária; e o Tratado de Lausana, na Suíça em 1923 sobre a dissolução do Império Otomano e a emergência da Turquia moderna. Efectivamente, hoje vemos a questão a reabrir-se ainda que sobre outras formas. O problema mais profundo é que os europeus — entenda-se, os europeus-ocidentais — não têm um quadro mental e estratégico adequado para enfrentar este problema. Estão socializados na hegemonia discursiva nos textos académico-científicos e dos media, produzida a partir da realidade da Europa Ocidental e euro-atlântica.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. O Sudeste europeu e o Mediterrâneo Oriental são um quebra-cabeças permanente para a União Europeia. Não é por um acaso histórico de inícios do século XXI que isso ocorre. Há razões profundas e até fundamentalmente previsíveis para que seja assim. Na realidade, o que estamos a assistir hoje é a um reemergir, sob outras formas, daquilo que na história diplomática europeia do século XIX e inícios do século XX se designava como a ‘Questão do Oriente’. Foi um longo período histórico cheio de conflitos sangrentos cujos marcos convencionais são o tratado entre a Rússia e o Império Otomano de 1774, após a derrota deste último — Tratado de Küçük-Kaijnardja, na actual Bulgária; e o Tratado de Lausana, na Suíça em 1923 sobre a dissolução do Império Otomano e a emergência da Turquia moderna. Efectivamente, hoje vemos a questão a reabrir-se ainda que sobre outras formas. O problema mais profundo é que os europeus — entenda-se, os europeus-ocidentais — não têm um quadro mental e estratégico adequado para enfrentar este problema. Estão socializados na hegemonia discursiva nos textos académico-científicos e dos media, produzida a partir da realidade da Europa Ocidental e euro-atlântica.
2. O discurso usual sobre as origens da União Europeia no pós-II Guerra Mundial — na altura Comunidades Europeias — é um indicador do problema. Olhando para a União Europeia alargada de hoje é uma narrativa limitada, quase toda construída a partir da experiência histórica e política euro-ocidental. Fundamentalmente, é feita à volta da memória trágica de um conflito entre grandes potências — a França e a Alemanha —, o qual começou por explodir com a unificação alemã de 1871, onde a França perdeu a Alsácia-Lorena. Evidencia ainda o papel dos nacionalismos exacerbados e das rivalidades imperiais e coloniais na engrenagem do conflito e da guerra, terminando, já na primeira metade do século XX, com a catástrofe do Nazismo que levou à II Guerra Mundial e à (auto)destruição europeia. Embora esse seja um passado naturalmente importante, é redutor querer compreender a União Europeia só nessa perspectiva. Há cada vez mais Estados-membros com outras experiências histórico-políticas marcantes do passado europeu, usualmente omissas. A narrativa convencional, que toma a parte pelo todo, tornou-se um obstáculo intelectual maior para compreender os problemas que a União enfrenta e, provavelmente, irá enfrentar ainda com mais intensidade. Um caso flagrante dessa incompreensão encontra-se na quase total omissão da influência da ‘Questão do Oriente’ na formação da Europa política contemporânea, e nos conflitos que têm aí a sua raiz, os quais nada têm a ver com o diferendo franco-alemão nem com os nacionalismos euro-ocidentais.
3. Os acontecimentos na guerra da Síria, no Idlib e na fronteira entre a Grécia e a Turquia interagem com outras formas de criação de identidade nacionais e de Estados nacionais soberanos que não foram as usuais no Ocidente europeu. Não é uma mera curiosidade histórica conhecer essa realidade. É um dado fundamental para se compreender, em termos geopolíticos, o mundo do século XXI e, em particular, os problemas que a União Europeia enfrenta no Sudeste europeu e Mediterrâneo Oriental, dentro e fora dela. Não é por acaso também que essas são zonas onde a fórmula de integração europeia supranacional inventada por Jean Monnet, Robert Schuman e outros nos anos 1950 mostra dificuldades em (re)produzir o mesmo sucesso. É algo que os eurocratas, habituados à criação de regras por padrões euro-ocidentais, parecem nem conceber. Como já explicado, o processo de integração surgiu à volta do contencioso histórico entre a França e a Alemanha — daí o eixo franco-alemão como ‘motor da União Europeia’. Mas esse não foi, nem é, o problema de outras Europas. Assim, quando se avança para o Mediterrâneo Oriental, as engenhosas soluções políticas inventadas na Europa Ocidental — mas para resolver problemas próprios da Europa Ocidental — funcionam mal, ou não funcionam de todo.
4. Há um teste empírico que facilmente pode ser feito e corrobora o anteriormente dito. As áreas de maior turbulência geopolítica na proximidade Sul/Sudeste da União Europeia, ou até já no seu interior — caso dos Balcãs incluindo aí a Grécia e Chipre —, mas também a Síria, o Líbano, Iraque, Israel/Palestina e Líbia —, têm todas um ponto de contacto histórico-político comum: são usualmente territórios do antigo Império Otomano onde há sequelas significativas desse passado. Para muitos, pode parecer algo demasiado distante para ter um impacto importante na geopolítica da região. Todavia, não é assim. Pelo duplo efeito do seu prolongamento no tempo até inícios do século XX, e das inúmeras sequelas que deixou, está mais próximo historicamente — e bem mais presente — do que se poderia pensar. Fundamentalmente, três circunstâncias recentes deram-lhe uma renovada importância: as ambições neo-otomanas da Turquia, com o Governo de Recep Tayyip Erdoğan a tentar reconstituir uma esfera de influência nos territórios perdidos do império; a crise dos migrantes/refugiados, gerada, sobretudo, pela guerra na Síria; e as descobertas de importantes reservas de gás natural no Mediterrâneo Oriental.
5. Na nova ‘Questão do Oriente’, a União Europeia, a principal herdeira das potências europeias ocidentais tradicionais, com excepção dos britânicos, não enfrenta hoje o problema clássico do século XIX — a decadência do “homem doente da Europa” —, ou seja, do Império Otomano/Turquia na designação do czar russo Nicolau I. Agora, o longo ciclo histórico parece ser mais favorável ao ressurgimento da Turquia (e da Rússia), e a um declínio relativo da Europa, mesmo tendo em conta os importantes sucessos da União Europeia na paz e criação de bem-estar. Assim, a nova ‘Questão do Oriente' não é marcada pelos problemas de um império territorialmente em retrocesso, como no século XIX, mas de uma ambiciosa Turquia em ascensão em termos económicos e militares (e em religação cultural e política ao seu passado islâmico-otomano). Como já assinalado, quer projectar a sua influência nos antigos territórios otomanos, dos Balcãs ao Médio Oriente. Há nesta Turquia um certo espírito de ‘imperialismo neo-otomano’. Não passa tanto por conquistas territoriais como era usual no passado, mas por instalar a sua influência religioso-política, cultural e económica explorando a conexão islâmica — com os muçulmanos dos Balcãs — e a proximidade ideológica do partido de Recep Tayyip Erdoğan, na Turquia, com o Islão político no Médio Oriente árabe. Aí o movimento islamista Irmandade Muçulmana, activo na Síria, Egipto, Palestina, Líbia e outros, é um parceiro privilegiado nessa política expansionista turca.
6. Uma outra dimensão marcante da nova ‘Questão do Oriente’ é o problema dos migrantes/refugiados. Não é nada de novo na Europa, mas não apenas pelas razões usuais da narrativa euro-ocidental à volta das Comunidades Europeias, como construção de paz e solidariedade, que repudiou a guerra e os nacionalismos da primeira metade do século XX. No Sudeste europeu essa memória mistura-se com outras mais poderosas. Há, desde logo, os traumas das guerras ligadas ao fim da Jugoslávia nos anos 1990. Mas mais profundo que tudo isso, a ‘Questão do Oriente’ interliga-se com o processo de formação dos Estado soberanos nessa parte da Europa. Foram longas e sangrentas lutas contra a opressão do Império Otomano que impregnam profundamente a cultura e identidade desses povos. As vagas de migrantes/refugiados alimentam receios de reivindicações sobre os seus territórios que os europeus-ocidentais subestimam. Qualquer alteração da componente demográfica de um grupo étnico e/ou religioso face a outro — e as migrações em massa do mundo árabe-islâmico e africano tendem a ter esse efeito — é politicamente muito sensível. A percepção explica-se pelo facto de a independência nacional ter sido conquistada no meio de enormes sofrimentos de guerra, massacres e deslocações forçadas de populações. Mas, no mundo de há um ou dois séculos, as crises humanitárias no Mediterrâneo Oriental e Médio Oriente ficavam confinadas aos territórios onde ocorriam e às zonas contíguas. Hoje, numa era de globalização e com fronteiras abertas dentro da União Europeia, prolongam-se rapidamente para o seu interior, com sérias consequências humanitárias e políticas.
7. A acrescer a toda esta complexidade geopolítica está agora também um importante recurso energético — o gás natural. Trata-se de importantes reservas descobertas no subsolo marítimo do Mediterrâneo Oriental, ao largo das costas de Israel/Palestina, Egipto, Líbano, Síria, Chipre e Turquia. A zona principal em exploração está situada entre Israel e Chipre. A exploração deste recurso energético está a ter um impacto económico e geopolítico importante na região. Já provocou um realinhamento estratégico importante entre Chipre, a Grécia e Israel, ao qual se junta ainda o Egipto. No outro campo está a Turquia, em disputa territorial com Chipre — ocupa militarmente a parte Norte, desde 1974 — e agora reclama também, através do Estado por si criado nessa parte da Ilha de Chipre (a República Turca de Chipre do Norte, sem reconhecimento internacional), uma zona exclusiva de exploração económica. Com algum interesse convergente com a Turquia está também a Rússia. Pretende, o mais possível, continuar com o seu monopólio de abastecimento à Europa de Leste e Central, não estando interessada em novos fornecedores, nem em gasodutos pelo Sul da Europa e Mediterrâneo que quebrem uma das suas maiores fontes de receita. Esta dimensão da nova ‘Questão do Oriente’, que é um dado inteiramente novo, originou linhas políticas cruzadas que se abatem sobre a União Europeia. Esta tem dois Estados-membros (a Grécia e Chipre), ao qual se junta um terceiro, a Itália, a explorarem esse gás natural. E um Estado candidato à adesão — a Turquia — a boicotá-la, o mais possível, incluindo com pressão de navios militares sobre empresas europeias que fazem prospecção nessa zona.
8. Por último, uma nota sobre a necessidade de uma política externa do Estado português face à nova ‘Questão do Oriente’. O país ganhará se tiver uma abordagem própria e bem delineada estrategicamente para esta questão, abordando-a como um todo, e não se limitando a alinhar com uma posição geral (feita por outros) na União Europeia, por achar que é um assunto distante da sua área tradicional de interesses. Mas a sua concepção autónoma implica, desde logo, ultrapassar o referido obstáculo dos quadros mentais usuais, compreendendo bem a especificidade do Sudeste europeu e do Mediterrâneo Oriental. O obstáculo é particularmente forte entre nós. Estamos impregnados de uma lógica cultural e de pensamento estratégico euro-atlântico e bastante mais familiarizados com África ou as Américas do que com a realidade dessa área geopolítica. Exceptuando estudos muito especializados, usualmente há apenas uma ideia superficial do Sudeste europeu e do Mediterrâneo Oriental. Para além de superar esse poderoso obstáculo, é necessária uma abordagem abrangente. Necessita de combinar conhecimentos geopolíticos e estratégicos stricto sensu, com conhecimentos histórico-culturais e sensibilidade humanitária. Em parte devido a esse frágil conhecimento, durante demasiado tempo criaram-se expectativas inconsistentes em relação a um Estado com uma identidade histórico-cultural fortíssima e as características geopolíticas da Turquia. As possibilidades reais de a União Europeia a converter aos valores seculares europeus — alinhando-a harmoniosamente pelos seus interesses estratégicos — sempre foi baixa. (Agora é demasiado evidente que não é possível). Apesar das apontadas limitações da política externa portuguesa (e europeia), há um trabalho meritório que tem sido efectuado por algumas instituições, entre as quais se destaca o Instituto da Defesa Nacional, em interacção com a sociedade civil. Tem ajudado a criar no país uma cultura estratégica e de segurança mais abrangente e, sobretudo, mais consistente. No primeiro semestre de 2021, Portugal irá assumir a Presidência rotativa do Conselho da União Europeia. É altura de mostrar que sabe liderar politicamente a União num assunto tão complexo e multifacetado como esta nova ‘Questão do Oriente’.