Novo coronavírus, uma vacina contra os movimentos antivacinas?

As expectativas de um tratamento ou vacina para o novo coronavírus vêm da genética, epidemiologia e imunologia, ou seja, da medicina baseada na ciência. Significará isso um recuo da pseudociência na saúde?

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O novo coronavírus visto ao microscópio electrónico de transmissão NIAID/Instititutos Nacionais de Sáude

Há neste momento mais de 30 candidatos a vacinas para o novo coronavírus a serem desenvolvidas por empresas e institutos de investigação, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Será que as esperanças depositadas numa vacina para o agente causador da doença covid-19 acabam por ser vacina contra os movimentos antivacinas?

É inegável que a ciência tem mostrado serviço. Os cientistas chineses foram rápidos a obter o primeiro genoma completo do novo coronavírus (SARS-CoV-2), que é uma sequência com 29.903 letras. Conhecer o genoma do agente causador da doença covid-19 permitiu criar rapidamente um teste genético que nos diz se uma pessoa está ou não infectada. Hoje o novo vírus já foi sequenciado mais de 100 vezes, a partir de amostras recolhidas na China, no Japão, Filipinas, Tailândia, Itália, entre outros. Tudo num tempo recorde graças aos progressos drásticos da tecnologia de sequenciação de ADN, ocorridos já no século XXI.

O teste genético para o vírus deve-se a uma técnica que valeu o Prémio Nobel da Química em 1993, chamada PCR (polymerase chain reaction, em inglês), que é uma autentica “máquina fotocopiadora” de ADN. As pessoas que ficam em suspenso à espera dos resultados dos testes por PCR para a covid-19 que vão sendo divulgados pela comunicação social, estão, na prática, a confiar nas ciências biomédicas e na comunidade científica. Trará o novo coronavírus uma valorização acrescida da medicina baseada na ciência? Ou será mais uma oportunidade de negócio para as terapias alternativas?

O médico alemão Edzard Ernst conhece bem os dois lados da barricada. Chegou a trabalhar num hospital homeopático na Alemanha, tendo-se depois tornado um dos maiores críticos das terapias alternativas. Ernst antevê um efeito misto. E exemplifica: “Antes do susto da covid-19 muitas pessoas eram contra os produtos químicos. Mas depois a primeira coisa que aconteceu foi ficarem esgotados todos os produtos químicos para desinfectar as mãos. Pode haver alguns convertidos à racionalidade. Por outro lado, como a medicina não consegue curar a infecção causada pelo novo coronavírus, isso levará algumas pessoas a salientar que a medicina convencional também não tem todas as respostas.”

Vasco Barreto, investigador da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, duvida que o novo vírus promova um aumento consistente da literacia científica: “Vivemos um pico de aprendizagem sobre doenças infecto-contagiosas, como no auge da crise financeira passámos por um curso rápido sobre o funcionamento dos mercados. São mais as pessoas que conhecem hoje o número básico de reprodução (o “R0”) da gripe e da covid-19 (um engripado infecta em média uma pessoa e um doente com covid-19 infectará duas ou três). Mas da mesma forma que a nossa literacia económica rapidamente se esfumou e os hábitos de consumo pré-crise voltaram, não sei se este actual curso de epidemiologia por aquisição passiva dará frutos.”

E como se posicionam as terapias alternativas neste surto? Para João Júlio Cerqueira, médico e autor do site SCIMED – Ciência Baseada na Evidência (que se dedica a divulgar análises fundamentadas sobre temas de saúde): “O que se tem observado é que existe um movimento paralelo à tentativa de contenção desta pandemia, que promove pseudociência como resposta ao problema. Tem sido promovido tanto por charlatões a tentar lucrar com a histeria, como por instituições governamentais. [Por exemplo] o Governo indiano promoveu a homeopatia como forma de prevenção, o que é uma opção completamente inútil. A própria OMS foi obrigada a criar um site para desfazer mitos e falsos tratamentos para esta infecção.”

Ernst é da mesma opinião: “Vemos todos os tipos de charlatães a entrar na onda. Não têm escrúpulos quando se trata de vender os seus produtos ou serviços.” Cerqueira dá exemplos: “Há vários charlatães a venderem suplementos como forma de ‘reforço imunitário’. Alguns são nomes muito relevantes das terapias alternativas em Portugal, o que deveria envergonhar os políticos que deram ouvidos a esta gente e legitimaram estas terapias. Promovem desde ervas até suplementos com vitamina C, D e complexo B. Nada disso demonstrou prevenir o contágio ou aumentar a probabilidade de sobrevivência.”

Antídoto anti-vax?

Poderá a percepção da necessidade de uma vacina para o novo vírus funcionar como um antídoto para os movimentos antivacinas? Na opinião do médico alemão isso pode acontecer: “Se for encontrada rapidamente uma vacina e for poupado um número significativo de vidas, isso seria uma vitória maravilhosa e poderia calar alguns dos patetas antivacinas.”

Já Vasco Barreto duvida: “É verdade que não há ainda imunidade de grupo para o coronavírus, o que faz cair por terra um dos argumentos (o mais egoísta) que esses movimentos usam para justificar a recusa de vacinas. Por um lado, não sabemos ainda quando a vacina chegará e tanto o grande público como os movimentos antivacinas dirão que chegou tarde de mais.” E remata: “Creio que para a covid-19 vergar os movimentos antivacinas teria de ser muito mais mortífera do que é e manifestar-se de forma realmente pandémica. Lembro que mesmo epidemias provocadas por vírus muito mais perigosos, como o da SARS, o ébola e o Zika, talvez pelo distanciamento geográfico, não serviram para contrariar os movimentos antivacinas que hoje observamos na Europa e nos EUA.”

Cerqueira também não antevê um rombo no porta-aviões antivacinas: “[Supondo que haja uma vacina] rapidamente surgirão os ‘factos alternativos’ para justificar o controlo da epidemia. Neste mundo alternativo tudo será apontado como razão para isso, excepto a vacina. Começará também a promoção do medo dos efeitos adversos associados à vacina e a ideia de que tudo isto é uma conspiração para enriquecer a indústria farmacêutica. Foi o que aconteceu com as vacinas para o HPV e para o [vírus da gripe pandémica] H1N1. É preciso compreender que os movimentos antivacinas são resistentes a factos. Vivem na bolha das teorias da conspiração e da desinformação. São um culto, uma seita da qual é muito difícil escapar. Não estou a ver esta epidemia mudar as opiniões dos convertidos.”

E a medicina tradicional chinesa?

Poderá a medicina tradicional chinesa reivindicar algum crédito pela resposta ao surto? Ernst considera improvável: “A medicina tradicional chinesa parece não oferecer qualquer solução. Talvez o Governo chinês possa fingir que ela ajudou, mas será fácil expor isso como sendo propaganda para impulsionar o negócio da medicina tradicional chinesa.” Barreto é da mesma opinião: “É difícil saber se a República Popular da China aproveitará a covid-19 para uma manobra de propaganda cultural e promoção da medicina tradicional chinesa, mas se os resultados das drogas antivirais forem superiores, tendo já em conta a má imagem que a China deixou na forma como inicialmente lidou com a informação sobre a covid-19 e a atenção mundial que a doença desperta, não há grande margem para dissimulações e propaganda.”

Haverá então algum impacto negativo na credibilidade da medicina tradicional chinesa? Cerqueira pensa que não: “O grande problema é que a ciência é muito mais lenta do que a propagação de pseudociência. Por exemplo, a epidemia por SARS foi em 2002-2003. Na altura, o Governo chinês também referiu que as ervas chinesas eram eficazes no tratamento desse surto. Foram precisos dez anos para a Cochrane [uma colaboração internacional de cientistas que revê a literatura médica] publicar uma revisão a demonstrar que as ervas chinesas são inúteis. Quando os factos chegam, habitualmente têm pouco impacto na percepção das pessoas sobre a eficácia dos tratamentos.”

Com ou sem uma epidemia em curso, parece evidente que é necessário promover a cultura científica. Afinal, o simples facto de sabermos que existe um novo vírus em circulação deve-se à ciência. É bom lembrarmo-nos disso.