Nada mais velho do que um jovem sem juventude
Sabemos que à pandemia de Trump, à febre de Bolsonaro e à disenteria de Ventura não se deve juntar a falta de imaginação e de esperança que é o estado geral de alarmismo e derrotismo. Aqui estamos para os combater porque o melhor antídoto é celebrar a vida.
Agora o Corona vai matar-nos a todos. Mas já antes a vida era uma selva com muitos venenos por onde escolher.
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Agora o Corona vai matar-nos a todos. Mas já antes a vida era uma selva com muitos venenos por onde escolher.
Donald Trump caiu sobre os EUA como uma pandemia que vai reincidir em Novembro. Bolsonaro infectou o Brasil, qual febre tropical, estúpida e daninha. André Ventura contamina-nos com aquele populismo pacóvio cuja taxa de contágio dizem estar nos 6% — e ainda fez uma intifada à literatura nos seus romances. O “Brexit” debilitou a União Europeia e talvez debilite o Reino Unido. Países como a Hungria fecham-se contra pessoas que vêem como infectadas. A Síria é uma ferida aberta que clama por paz. Certa esquerda perdeu-se em tribalismos cada vez mais diminutos, mais irritáveis, mais casuísticos e dominadores do bem-pensar, bem-falar e bem-escrever, muito na escola puritana. A direita simplesmente perdeu-se; alguém anda à procura dela mas ainda não a encontrou. E, mais dia menos dia, a atmosfera desiste, isto de respirar deixa de ser viável e livramo-nos do fardo de existir.
Talvez por escrever enquanto estes vírus nos cercam, uns mais de mansinho do que outros, apetece-me soltar o meu lado woodyallenesco de iminência da morte. Qual neurótico, esfregar-me de alto a baixo com aqueles álcoois, tapar com uma máscara todos os orifícios e quem sabe sair à rua com cartazes de “Arrependei-vos, pois o fim está próximo!” Como não ter sintomas preocupa e ter sintomas é preocupante, mais vale negarmos os beijos, os abraços e os estreitamentos que dão alegria à vida.
O outro parece-nos cada vez mais contaminado, doentio, e nem a literatura — que nos ensina a ver além de nós — parece ser remédio santo. Antes renegar completamente o outro, tementes de apanharmos um achaque de populismo, uma febre de esquerda identitária, uma constipação bolsonarista ou até um acesso de Corona.
E eu estou quase a fugir para a quarentena, quando me ocorre que tenho 30 anos para celebrar. Do PÚBLICO, cujas páginas marcaram as últimas três décadas em pleno combate pela verdade, e da geração que nasceu com este jornal.
Dá um certo conforto pensar que a humanidade só esteve serena quando ainda não era humanidade e que isto anda algo confuso desde o Big Bang. Que festejar enquanto os vírus nos acossam não é ingenuidade nem pensamento mágico, porque a alegria e a esperança têm os seus motivos.
Nascemos em segurança e paz, numa democracia que se tornou sólida e que está apta a defender-se. Felizmente, já nos soam a ancestrais os tempos da ditadura. A esperança média de vida aumentou nas últimas décadas, com a medicina a quebrar continuamente barreiras. Os indicadores dos conflitos armados atestam decréscimos nas últimas décadas. Pelo mundo, em 1990, havia 1,9 mil milhões de pessoas em pobreza extrema, em 2020, o Banco Mundial prevê que tenham diminuído para perto de 600 milhões. Crescemos com um sentido agudo de comunidade europeia. Entre nós, ninguém nega as alterações climáticas e a necessidade de as combater, com crescentes sinais de participação cívica entre os adolescentes. Estamos mais atentos às minorias e deixámos de aceitar a agressividade em relação ao outro. Viajamos mais, o mundo dá-se-nos a conhecer. Tendo consciência plena da nossa plena liberdade de expressão, queremos preservá-la e defendê-la. E temos nas mãos instrumentos mágicos que nos dão o poder do conhecimento e da proximidade.
Tranquiliza-me saber, como no Eclesiastes, que as gerações passam, outras lhes sucedem, mas a terra subsiste sempre. Que nem tudo se resume à voragem dos acontecimentos nem ao prisma da mera política partidária. Que há um entusiasmo alegre no debate das ideias contrárias e que a exposição ao outro não infecta, antes nos dá mais para viver. Que outras gerações enfrentaram muito pior e conservaram a esperança. Que não habitamos o melhor dos mundos possíveis, nem somos cândidos, embora guardemos o optimismo: não há nada mais velho do que um jovem sem juventude.
E sabemos que à pandemia de Trump, à febre de Bolsonaro e à disenteria de Ventura não se deve juntar a falta de imaginação e de esperança que é o estado geral de alarmismo e derrotismo. Aqui estamos para os combater porque o melhor antídoto é celebrar a vida.