Internamento compulsivo e Constituição da República
Em Portugal, o internamento compulsivo, sendo determinados no interesse do doente e da comunidade, já tem consagração constitucional.
1. É precisamente esta a questão que tem vindo a ser colocada ante a preocupação crescente da comunidade nacional face ao alastramento do coronavírus, também conhecido por Covid-19. No quadro dos procedimentos médicos que podem ser adotados não falta quem ponha em causa as medidas que podem envolver constrangimentos da mais diversa natureza, como o de internamento compulsivo ou a quarentena que afeta a livre movimentação das pessoas.
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1. É precisamente esta a questão que tem vindo a ser colocada ante a preocupação crescente da comunidade nacional face ao alastramento do coronavírus, também conhecido por Covid-19. No quadro dos procedimentos médicos que podem ser adotados não falta quem ponha em causa as medidas que podem envolver constrangimentos da mais diversa natureza, como o de internamento compulsivo ou a quarentena que afeta a livre movimentação das pessoas.
A Direção-Geral da Saúde, através de medidas adiantadas pelos serviços sanitários competentes, mantém Portugal até agora protegido de uma plausível calamidade pois, a dar fé, reproduzindo as palavras do sr. primeiro-ministro, “mais tarde ou mais cedo Portugal terá o seu primeiro caso”. Até ao presente, pelos vistos, não foi necessário fazer apelo a qualquer medida que envolva o internamento compulsivo.
Mas, “quid juris”, se a entidade sanitária, face à realidade das coisas, médica e clinicamente aferidas e em homenagem à saúde pública, optar por esta medida e eventualmente outras congéneres (ex: quarentena)?
Alguns sustentam neste caso que este tipo de internamento viola a Constituição da República, nomeadamente o n.º 2. do artigo 27.º, uma vez que seria carente de uma condenação ou aplicação judicial de medida de segurança. Sem pôr em causa a necessidade de uma tal medida, defendem, no entanto, que tal só será viável com uma alteração constitucional sob pena de se constatar uma violação do direito à liberdade não o fazendo.
2. Apreciando, dir-se-á que aparte a formulação de princípio constante do n.º 1 do mencionado artigo 27.º (todos têm direito à liberdade e à segurança), o n.º 2 reporta-se a uma problemática do foro criminal, campo de eleição onde se joga precisamente a dimensão a atribuir à liberdade do cidadão/prevaricador. Daí a exigência processual do “due process of law”, numa tramitação expressa com todas as garantias de defesa do cidadão a braços com problemas de justiça. Aqui a liberdade opõe-se ao prevaricador, na base de punição pela prática de um ato ilícito que praticou. Daí, pois, a reclusão.
3. Porém, o internamento compulsivo no caso de que vimos falando tem também tratamento no normativo do artigo 64.º da Constituição da República, encontrando o seu fundamento numa base distinta – a de Direitos e Deveres Sociais, em homenagem, não à prática de ilícitos criminais, mas do direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover a todos os níveis. Seria assim estulto pensar que alguém, depois de saber que está afetado por uma enfermidade grave, recuse o internamento que o pode livrar do mal que padece. Num contexto desses, é irrisório estar à espera que se proceda a um julgamento para que seja decretado um internamento ou uma medida de segurança; nem o doente autorizará ou estará à espera que seja “condenado” ao internamento nestes termos.
É, aliás, no âmbito deste preceito constitucional que foi promulgada a Lei 81/2009, de 21.08, que institui um sistema de vigilância em saúde pública, recolhendo, atualizando, analisando e divulgando os dados relativos a doenças transmissíveis e outros riscos em saúde pública, preparando planos de contingência face a situações de emergência ou tão graves como de calamidade pública. Estão aqui patentes dois propósitos: o da salvaguarda do cidadão visado em especial e o respeito ao direito dos outros à proteção e saúde. O diploma dispõe sobre um conjunto de organismos responsáveis em diversas áreas e procedimentos, prevendo mesmo a eventualidade de elaboração de relatórios em caso de calamidade pública que justifiquem a declaração de estado de emergência (artigo 7.º, 2.b) do diploma). Diga-se em abono de verdade que não é em vão que o nosso país tem até agora resistido à situação calamitosa que alguns outros países têm estado a viver. Se assim é, a bem pouco fica reduzido esse anseio por uma alteração da Constituição para legitimar um internamento compulsivo ou outras congéneres, que sendo determinados no interesse do doente e da comunidade já têm consagração constitucional.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico