O coronavírus não é como o vírus da gripe
As pessoas não devem estar alarmadas. Mas o Governo e as autoridades devem estar
A reacção inicial do Governo chinês ao coronavírus foi péssima, ao censurar notícias sobre a divulgação do vírus, nomeadamente por médicos. Contudo, desde meados de Janeiro que a reacção das autoridades chinesas, duríssima, apontou novos caminhos que o mundo desenvolvido faria bem em seguir.
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A reacção inicial do Governo chinês ao coronavírus foi péssima, ao censurar notícias sobre a divulgação do vírus, nomeadamente por médicos. Contudo, desde meados de Janeiro que a reacção das autoridades chinesas, duríssima, apontou novos caminhos que o mundo desenvolvido faria bem em seguir.
O mundo e o nosso país, em particular, deveriam estar agradecidos à China pelas medidas draconianas adoptadas, um cordão sanitário de mais de 500 milhões de pessoas, redução dos movimentos das pessoas e redução brutal da actividade económica com todas as consequências e custos que daí advêm para os chineses e para a economia chinesa.
O Governo chinês poderá vir a ser acusado de reagir em pânico e é certo que muita gente terá sofrido (e até perdido a vida) em consequência dessas medidas. Contudo, na dúvida, o Governo da China colocou a saúde das pessoas à frente de preocupações com a actividade económica.
Graças a essas medidas sem precedentes – medidas essas low-tech, que relembram medidas da Idade Média –, o vírus não se espalhou tão rapidamente dando tempo a governos de outros países para se prepararem e às pessoas para alterarem os seus comportamentos.
A ponto da Organização Mundial de Saúde (OMS) chamar a atenção para o sucesso das medidas adoptadas referindo que se traduziram numa redução real do número de novos casos de Covid-19.
Contudo, como se vê pelos exemplos do Japão, Coreia do Sul, Itália, Irão e Estados Unidos (EUA), outros países não souberam aproveitar a oportunidade e o tempo que lhes foi oferecido pela “experiência” chinesa. Em particular, graças a erros crassos do Center for Diseases Control (CDC) no desenho de kits para testes ao vírus, à incapacidade do CDC em realizar testes em massa e à natureza privada do seu sistema de saúde pública, os EUA enfrentam grandes dificuldades em diagnosticar e responder a alguns surtos locais, sendo muito pouco provável que tenham somente os 22 casos oficialmente identificados até à data da escrita desta coluna, tendo somente realizado 472 testes oficiais (do CDC) em todo o território dos EUA. A resposta do Governo japonês também tem sido desastrosa, com os críticos a queixarem-se da falta de testes à população.
A Coreia do Sul parece ter-se apercebido do que ocorreu e rapidamente alterou de estratégia de saúde pública, tendo realizado, só no dia 28 de Fevereiro, mais de 10 mil testes ao Covid-19, nomeadamente um teste “drive-in” de 10 minutos em que as pessoas nem sequer saem dos seus carros. Terá testado mais de 76 mil pessoas até 28 de Fevereiro.
Em contraste, a Direcção Geral de Saúde (DGS) portuguesa apenas realizou 70 testes ao vírus até 29 de Fevereiro, tendo 67 desses testes tido resultado negativo. Um número de testes manifestamente insuficiente para um país com mais de 10 milhões de habitantes.
A reacção do Governo de Portugal e da directora da DGS
A directora da DGS, Graça Freitas, compreensivelmente, procurou tranquilizar a população em declarações ao PÚBLICO e numa entrevista ao Expresso. Em concreto, referiu que a DGS trabalha com um cenário em que 10% da população portuguesa será afectada. Ora, com uma taxa de mortalidade de 2,3% a 2,4% tal significaria entre 23 e 24 mil mortos em Portugal. Os números assustaram a opinião pública e Graça Freitas veio posteriormente dizer que é apenas um cenário (o pior cenário) e não uma previsão fazendo uma comparação, que se afigura infeliz, do Covid-19 com o vírus da gripe.
Também a OMS e os meios de comunicação social procuram evitar a histeria/pânico e combater os rumores e as notícias falsas.
Numa mensagem de teor similar, o primeiro-ministro, ao apelar ao público para se prevenir contra a doença (muito bem) afirmou que é necessário evitar “o alarmismo desnecessário”.
Tem razão, as pessoas não devem estar alarmadas. Mas o Governo e as autoridades devem estar. E a morte (anos) prematura de 23 mil portugueses mesmo que “somente” entre “idosos”, isto é, a geração dos meus pais e dos avós das minhas filhas, parece um número completamente inaceitável em termos de políticas públicas da saúde.
Afigura-se que, embora procurando publicamente combater a histeria e o pânico das pessoas, as autoridades nacionais devem agir como se esta fosse – como parece ser – uma ameaça de muito elevada perigosidade.
Explico-me.
Quais são os factos conhecidos?
Não há (ainda) vacina para o vírus. Como não há ainda vacinas para outros vírus da família do Covid-19 (o SARS de 2003 e o MERS de 2013).
As características do Covid-19 parecem diabólicas. Um período de incubação longo e com frequência sem sintomas (entre 1 e 14 dias, segundo a OMS, mas as autoridades chinesas documentaram um caso com período de incubação de 27 dias) em que o doente já poderá contagiar outros. O vírus aloja-se na garganta, na boca e no nariz. O vírus é super-eficiente a transmitir-se entre humanos. A OMS diz no seu site que o vírus não se transmite de e a animais domésticos, mas as autoridades de Hong Kong informaram que o cão de um paciente com o Covid-19 testou positivo fraco (“weak positive”) e decretaram uma quarentena dos animais domésticos de doentes com o Covid-19. Os casos mais graves do vírus resultam em falência múltipla de órgãos. O vírus aguenta-se horas ou mesmo dias em superfícies, segundo a OMS (investigadores na Alemanha referem até 9 dias).
Um perito da Universidade de Harvard, Marc Lipsitch, afirma esperar que o vírus venha a contaminar entre 40% e 70% da população mundial este ano. Outro perito da Universidade de Hong Kong, Gabriel Leung, fala em dois terços da população mundial, estimativas que são muito superiores, por conseguinte, aos 10% do pior cenário da DGS, i.e., entre 100 e 170 mil mortes prematuras em Portugal, se a taxa de mortalidade assumida pela DGS fosse a correcta.
Existem dados que parecem confirmar essas estimativas de contágio dos peritos de Harvard e de Hong-Kong. De acordo com a correspondente da BBC na Coreia do Sul, Laura Bicker, 81% dos 1900 membros da seita religiosa (Igreja Shincheonji) em Daegu, na Coreia do Sul - seita caracterizada por realizar missas em espaços fechados exíguos cheios de fiéis -, testaram positivo para o vírus. As autoridades sul-coreanas acreditam que terá sido essa seita religiosa que introduziu o vírus na Coreia do Sul.
Devem ser evitados agrupamentos de pessoas em espaços fechados e exíguos
Outros países que já experienciaram o vírus nos seus sistemas de saúde (e que conhecem o vírus melhor do que as autoridades portuguesas) adoptaram medidas de saúde pública radicais, i.e., alarmistas: China, com cordões sanitários de centenas de milhões de pessoas; o Japão e a China encerraram todas as escolas durante um mês; a Itália impôs um cordão sanitário a 11 cidades no norte desse país e suspendeu os voos directos para a China e para a Formosa; a França proibiu eventos com mais de 5.000 pessoas e impôs um cordão sanitário a uma base militar perto de Paris; a principal feira de telecomunicações móveis em Barcelona foi cancelada; a principal feira automóvel em Genebra foi cancelada; os EUA proibiram a entrada no país a não residentes que tenham estado recentemente nas províncias chinesas afectadas pelo surto; a Coreia do Sul está a realizar testes gratuitos para despite do Covid-19; provas desportivas foram canceladas em Tóquio, Paris e Itália.
Há alguns casos que sugerem a possibilidade de reinfecção de pacientes recuperados do Covid-19. Há casos de pacientes que testam negativo e que mais tarde testam positivo, i.e., falsos negativos.
Um paper publicado na prestigiada revista científica Antiviral Research com revisão por pares argumenta que o Covid-19 tem elementos (sequências) que não se encontram em nenhum outro vírus da família do coronavírus. Outra investigação (que ainda não foi publicada em revista com revisão por pares) argumenta o Covid-19 contém sequências similares às que se encontram nos vírus da gripe aviária, da Sida e do Ébola e que tornam o contágio do Covid-19 muito mais “eficiente” (mais de mil vezes mais “eficiente”?) que o vírus do SARS. Existem outros papers na calha (ainda não revistos por pares) com mensagens similares.
Por conseguinte, embora compreensível, não parece construtiva ou adequada a posição que é necessário evitar alarmismos desnecessários.
As autoridades nacionais devem escolher o caminho difícil e arriscado, não o mais fácil (e, porventura, politicamente mais prudente)
É certo, é alarmista pensar que se devem adoptar medidas draconianas face a um vírus que ainda “só” infectou 87.000 pessoas e matou quase 3.000 pessoas no mundo –, à data da escrita desta coluna –, a maior parte das quais idosas e com outras pré-condições de saúde desfavoráveis, e num momento em que ainda não existem casos de infecção pelo Covid-19 oficialmente registados em Portugal.
Contudo, as autoridades nacionais deveriam assumir que este vírus é muito pior do que o vírus da gripe ou do que os vírus do SARS ou do MERS.
É melhor prevenir do que remediar
Por essa razão, as autoridades nacionais deveriam adoptar medidas de excepção. Em particular, à semelhança da China e do Japão, as escolas portuguesas deveriam encerrar durante um mês. Deveria ser proibida a presença de número excessivo de pessoas em espaços exíguos e fechados, quer públicos quer privados, através da redução temporária das lotações legais permitidas.
E o Governo deveria preparar e implementar rapidamente várias medidas de política económica para apoiar a sociedade, as famílias e as empresas neste processo, por exemplo, aceitando suportar os custos das autoquarentenas de pessoas com sintomas de gripe.
Tenho a noção do impacto e dos custos pessoais e económicos de tais decisões, noção que ainda assim provavelmente peca por defeito. Mas, infelizmente, essas medidas de excepção parecem agora necessárias.
É preferível que as autoridades nacionais sejam alarmistas a ponto de caírem no ridículo, do que a alternativa. Não nos podemos permitir falhar no combate a este estranho novo vírus!
PS: Na minha coluna de 17 de Fevereiro argumentei que, se o surto fosse confinado à China, o efeito na economia do resto do mundo poderia ser marginalmente positivo. Mas alertei que se não fosse possível conter o vírus na China, como parecia provável, então “all bets are off”. O pior cenário parece ter-se materializado. Por conseguinte, as autoridades nacionais e internacionais têm de se mostrar à altura deste desafio sem precedentes na história recente.