Em Paris, vê-se o futuro sombrio da moda, mas ainda há brilho na escuridão
A ameaça do coronavírus fez com que alguns editores e comerciantes regressassem a casa mais cedo. Mas alguns designers conseguiram mostrar tons de esperança.
Era domingo. E Kanye West levou a indústria da moda à igreja. Mais precisamente, levou as pessoas até à igreja negra, com coro gospel incluído. E, quer se acredite num poder superior ou que após a morte resta apenas pó e cinzas, há algo profundamente emocionante em ouvir vozes a erguerem-se em harmonia, entoando uma monumental mensagem de esperança e fé. Mesmo que as palavras não tenham nenhum significado, o ribombar dos barítonos e a doçura dos sopranos tocam a alma.
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Era domingo. E Kanye West levou a indústria da moda à igreja. Mais precisamente, levou as pessoas até à igreja negra, com coro gospel incluído. E, quer se acredite num poder superior ou que após a morte resta apenas pó e cinzas, há algo profundamente emocionante em ouvir vozes a erguerem-se em harmonia, entoando uma monumental mensagem de esperança e fé. Mesmo que as palavras não tenham nenhum significado, o ribombar dos barítonos e a doçura dos sopranos tocam a alma.
West estava ali, àquela hora da manhã, ao lado do piano e no centro do círculo de cantores no Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris, mas a maioria do tempo em silêncio — apenas sorrindo e balançando a cabeça. Os membros do coro eram as estrelas que, com o seu optimismo carismático, as suas ondas rítmicas e testemunhos emotivos, conseguiram levar um pouco de luz no meio da escuridão.
Durante 90 minutos, foram apenas muitas vozes numa bela harmonia. Era apenas música: sem chapéus MAGA (acrónimo para “Make America Great Again” de Donald Trump). Sem provocações políticas. Sem fogo nem enxofre. Sem moda. Nenhuma conversa sobre pandemias. Sem um Kanye controverso. Por 90 minutos, talvez as pessoas conseguissem resistir ao impulso do cinismo, de procurarem o motivo oculto, de estarem em aleta máximo.
O coro precipitou-se numa Semana da Moda [de Paris] que foi praticamente distópica. A ameaça do novo coronavírus fez com que alguns editores e empresários regressassem a casa mais cedo, impediu que outros aparecessem e colocou quase toda a gente no limite. O Museu do Louvre fechou. E os turistas percorrem a cidade com a cara escondida sob uma máscara.
Houve uma quantidade excessiva de preto na passerelle. Demasiados enchumaços nos ombros e casacos com capuz. E não se tratam de respostas ao novo coronavírus: estas colecções foram desenhadas há muito. Mas tudo flui, na sensação de angústia e inquietação de que algum sapato de chumbo está prestes a cair.
Muitas roupas na passerelle nasceram de um estado de instabilidade. Tal não significa que não existam ideias profundamente fascinantes, com algumas roupas a mostrarem-se maravilhosamente atraentes. Mas as mesmas nasceram da dolorosa procura da alma, do desespero e da frustração.
Rousteing e o regresso às origens
Para o designer Olivier Rousteing, um trabalho de exploração da sua própria história levou-o a criar a sua mais refinada e sofisticada colecção de sempre para a Balmain. Nos últimos anos, o criador, que foi adoptado, tem vindo a investir na descoberta da sua história de vida — uma viagem documentada no filme Wonder Boy. Uma das descobertas permitiu identificar que tinha ascendência etíope e somaliana, não sendo fruto de uma relação birracial, como sempre presumira. A reavaliação das suas raízes fez com que se lembrasse do mundo rarefeito que sempre sentiu estar fora do seu alcance, devido à cor da sua pele e às suas origens.
A sua colecção para o Outono/Inverno foi inspirada nos códigos da classe alta que o cercavam quando criança, em Bordeaux: o estilo equestre, as estampagens nos cachecóis de seda, os tecidos do Velho Mundo. Todas essas coisas encontraram lugar nos vestidos de seda esvoaçantes em tons musgosos, nos corpetes de pele moldados e nas exuberantes jaquetas e saias de lã.
Ao se voltar para dentro, Rousteing trouxe uma alma mais meditativa ao seu trabalho. Parou de gritar. E, diminuindo o volume, enviou uma mensagem mais sonora.
Céline, presa ao passado
Na Céline, desfilou uma espécie de cinismo estético. O estilista Hedi Slimane mostrou tantos vestidos, blusas com gola-laço, jeans skinny, blazers dos anos 1970 e muitos casacos de cortes para homens e mulheres. Certo é que o grande número de looks que percorreram a sua passerelle, na noite de sexta-feira, testaria a paciência de qualquer fã de moda.
Mas não os fãs de Slimane, que se prepararam para a maratona e aplaudiram entusiasticamente quando o último modelo desapareceu de vista.
Para o desfile, Slimane escolheu modelos altas e magras, que relembravam os tempos em que não estava na moda fazer exercício, como parte de uma rotina de bem-estar, e as anfetaminas eram consumidas como rebuçados. Algo que combina com as roupas retro que propõe — de corte limpo e um pouco estilizadas para causar aquela sensação de se ser cool. Claro que, como vestuário, é difícil argumentar com um blazer bem cortado, um bom par de jeans e umas botas de tacão.
Mas é difícil superar o facto de a Céline de Slimane estar estagnada. A marca parece presa a um passado recente e, ao mesmo tempo, distante, numa altura em que o futuro parece exigir toda a nossa atenção.
A sombra e a luz de Gvasalia
O futuro preocupa o designer Demna Gvasalia. Quando os convidados chegaram para o show da Balenciaga, no final da manhã de domingo, uma hora depois do coro de gospel ter exortado para manter a fé, foram acolhidos num anfiteatro preto onde se distinguia o odor do medo. Enquanto se descia em direcção ao andar principal, parecia que se estava a ir em direcção a um abismo — uma ilusão de óptica criada por uma piscina de água perfeitamente imóvel que se estendia de uma extremidade à outra do teatro.
Quando a primeira manequim saiu, nuvens escuras rolaram na tela de luz que formava o tecto da sala. A modelo, vestida de preto, chapinhou na água escura. De ambos os lados, as três primeiras filas de cadeiras, vazias, estavam parcialmente submersas. Parecia que tínhamos sido atingidos por uma inundação a anunciar o fim dos dias.
A música, então, explodiu e as nuvens escuras deram lugar a um céu laranja flamejante até que, finalmente, viu-se a imagem de uma frágil bola azul, [o nosso planeta Terra], lentamente eclipsada por uma sombra negra.
O espectro do perigo ambiental estava no centro da apresentação de Gvasalia. E a sobrecarga sensorial envolveu mais um golpe emocional do que um conjunto de estatísticas sombrias, um jornal científico ou as exultações de um orador sério. Eram as visões, os sons e os cheiros da distopia.
E então, o que vestir num planeta em falência? O trabalho de Gvasalia trata da desconexão entre indivíduos e o mundo natural, entre indivíduos e a sua comunidade, entre indivíduos e eles mesmos. À medida que as modelos passam com os seus ombros largos que as fazem parecer ferozes e formidáveis, lembramo-nos que as roupas servem como uma espécie de refúgio. Afinal, alguém enfiado num casaco ou blazer não precisa de se envolver com outras pessoas. Já os conjuntos de motocrosse, tirados do contexto, fizeram com que as modelos parecessem menos humanas e mais com cyborgs.
Mas a colecção não é só alarde e arrogância. Há belos exemplos de alfaiataria e costura moderna e rigorosa, com jaquetas moldadas ao corpo e vestidos-macacões que transformam o elaborado processo de vestir-se para uma festa de gala.
Gvasalia já defendeu ombros dramáticos antes. Eles fazem parte do vocabulário estabelecido. Agora é o capítulo mais desafiante: pegar nesse vocabulário e contar histórias novas e mais subtis. É que as suas silhuetas são incansavelmente voltadas para o futuro, mas, agora, o futuro parece terrivelmente sombrio.
O trabalho de um designer não é necessariamente animar-nos — oferecer algo como uma mentira piedosa. E Gvasalia mostra-nos a verdade do nosso mundo instável, a escuridão dentro de nós.
Para o fim, ficou a sua modelo preferida, a artista Eliza Douglas, que desfilou num vestido bordado com strass que captava e ampliava toda a luz da sala.
E foi então que Gvasalia parou de nos oferecer uma bela morte, criando um motivo para que continuemos a respirar.