A herança de um jornal “sui generis”
Memória de um suplemento cultural a sério, ainda que não “sério”, uma torrente mensal de modernidade, da cultura popular à mais erudita, estrangeira e nacional, analisada de um modo iconoclasta, auto-irónico, sabedor de um dizer-entre-linhas para fintar o censor que não redundasse em língua-de-pau, algo que não havia de todo na imprensa portuguesa.
Um dos mais extraordinários textos que provam o condicionamento censório à expressão escrita pelas mais altas esferas do poder durante o Estado Novo foi assinado em 10 de Setembro de 1965 por Paulo Rodrigues, o então sub-secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, em suma, o secretário político de Salazar. Visava este dar o parecer final sobre as sanções que os Serviços de Censura, sob sua tutela, tinham sugerido aplicar ao semanário Jornal do Fundão pela grave “transgressão” de ter publicado, a 23 de Maio, uma notícia sobre o prémio dado a Luuanda de Luandino Vieira pela Sociedade Portuguesa de Escritores, com foto do premiado (então preso em Luanda por actividades “subversivas”). É aí que, procurando analisar a identidade e influência do jornal, o todo-poderoso “gauleiter” (Cardoso Pires scripsit) da Censura estatal nos últimos seis anos do consulado de Salazar lhe aplica a descrição que está no título deste artigo: um jornal de província mas com expansão nacional e ultramarina, hábil em ser aceite por sectores opostos do xadrez político e social, cuja tipografia era também destemido prelo para inúmeros livros desafiantes das ortodoxias política e religiosa, e, para mais, com capacidade para acolher um projecto de suplemento cultural de qualidade, dirigido pelo mesmo Alexandre Pinheiro Torres que, no seguimento do encerramento da SPE, fora proibido de dirigir a secção cultural do Diário de Lisboa. Foi, pois, nesse documento que se confirmou a dura pena de seis meses de suspensão do jornal, tendo o seu director, António Paulouro, de deslocar-se a Lisboa para apresentar as provas na sede da Censura, por perda de confiança dos serviços na sua delegação distrital: no ano e meio que vai até ao final de 1966, período de acentuado aperto repressivo, essa suspensão foi, junto com o encerramento compulsivo (e violento) da SPE e da editora Minotauro e os dois processos movidos à Afrodite pela edição de outros tantos livros, um sinal inequívoco da inflexibilidade do regime no policiamento da edição periódica e não-periódica.
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Um dos mais extraordinários textos que provam o condicionamento censório à expressão escrita pelas mais altas esferas do poder durante o Estado Novo foi assinado em 10 de Setembro de 1965 por Paulo Rodrigues, o então sub-secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, em suma, o secretário político de Salazar. Visava este dar o parecer final sobre as sanções que os Serviços de Censura, sob sua tutela, tinham sugerido aplicar ao semanário Jornal do Fundão pela grave “transgressão” de ter publicado, a 23 de Maio, uma notícia sobre o prémio dado a Luuanda de Luandino Vieira pela Sociedade Portuguesa de Escritores, com foto do premiado (então preso em Luanda por actividades “subversivas”). É aí que, procurando analisar a identidade e influência do jornal, o todo-poderoso “gauleiter” (Cardoso Pires scripsit) da Censura estatal nos últimos seis anos do consulado de Salazar lhe aplica a descrição que está no título deste artigo: um jornal de província mas com expansão nacional e ultramarina, hábil em ser aceite por sectores opostos do xadrez político e social, cuja tipografia era também destemido prelo para inúmeros livros desafiantes das ortodoxias política e religiosa, e, para mais, com capacidade para acolher um projecto de suplemento cultural de qualidade, dirigido pelo mesmo Alexandre Pinheiro Torres que, no seguimento do encerramento da SPE, fora proibido de dirigir a secção cultural do Diário de Lisboa. Foi, pois, nesse documento que se confirmou a dura pena de seis meses de suspensão do jornal, tendo o seu director, António Paulouro, de deslocar-se a Lisboa para apresentar as provas na sede da Censura, por perda de confiança dos serviços na sua delegação distrital: no ano e meio que vai até ao final de 1966, período de acentuado aperto repressivo, essa suspensão foi, junto com o encerramento compulsivo (e violento) da SPE e da editora Minotauro e os dois processos movidos à Afrodite pela edição de outros tantos livros, um sinal inequívoco da inflexibilidade do regime no policiamento da edição periódica e não-periódica.
Podemos, portanto, sem grande exagero, além de nos talentos e “manhas” de José Cardoso Pires e Vitor Silva Tavares (VST), radicar nessa única edição do “Argumentos”, como se chamou a malograda página cultural de 1965 do Jornal do Fundão pela mão de Pinheiro Torres, e nesse humilhante encerramento, o renascimento vigoroso e desafiador daquele como jornal capaz de publicar um grande suplemento cultural, materializado na primeira edição do & etc... – magazine das artes, das letras e do espectáculo em Fevereiro de 1967. Eis aí o meu único reparo a esta notável edição fac-similada da série completa do suplemento pelo Jornal do Fundão e a Canto Redondo: a reprodução das páginas da edição do jornal em que o prémio da SPE se noticiou, bem como do texto assinado pela “caneta de Salazar” (como Paulo Rodrigues se descreveu, ao sair do posto em 1968), teria dado uma maior espessura à contextualização política do surgimento do & etc (de resto, solidamente explanada no texto de Emanuel Cameira), um surgimento “inesperado”, por certo, mas não tanto de “geração espontânea”, como afirma Júlio Moreira (num texto excelente), antes plenamente explicado (e, quem sabe, preparado) nas provações desse ano e meio.
Cabe, e não seria de esperar outra coisa, a um texto de 2015 de VST (falecido em Setembro desse ano) uma precisa justificação técnica do formato do suplemento, “para que pudesse ser destacável”, dobrando uma folha do jornal a meio e paginando “ao deitado”, numa grelha limpa a quatro colunas. À erudição visual de VST, num espírito de eclectismo vernaculista e Pop tão do seu tempo, deve-se, sem dúvida, o impacto gráfico do suplemento: é ele que traz de Paris uma edição Pauvert do catálogo Deberny & Peignot de vinhetas gráficas oitocentistas (uma das quais, a de uma dentadura aberta, acabará na capa da Antologia do Humor Português da Afrodite, depois de reproduzida no suplemento), que usará para polvilhar estas páginas (servindo até para tapar “buracos” deixados pelos cortes censórios), e a sua capa para a edição de Grifo, em 1970, apropriará sabiamente um alfabeto criado com montagens dessas vinhetas por Roman Cieslewicz. São apenas dois exemplos de uma crucial cultura visual para um faz-tudo, a quem Cardoso Pires deixara a tarefa hercúlea de, sozinho, compor as oito páginas mensais do suplemento (além de assinar, com nome ou pseudónimo, dezenas de textos). O afastamento de VST dos dois principais polos da batalha cultural naquela altura, o da “situação” adstrito ao SNI e o da oposição adstrito ao neorrealismo, perfeitamente ilustrado nessa “destacabilidade” física do suplemento e mesmo na distância geográfica do Fundão a Lisboa, será a outra hélice do projecto, injectando-o de aportações de gente ou muito nova ou muito esquecida ou muito afastada também, todos desalinhados da “situação” e da oposição mais ortodoxa mas em perfeito alinhamento entre si, num verdadeiro “espírito & etc”. A facilidade com que VST agregava e seduzia colaboradores fez o resto.
O resultado foi o que, em 1967, e durante um par de anos, não havia de todo na imprensa portuguesa: um suplemento cultural a sério, ainda que não “sério”, uma torrente mensal de modernidade, da cultura popular (a divulgação por cá da melhor BD adulta de então, saída sobretudo do catálogo de Eric Losfeld, foi feita aqui) à mais erudita, estrangeira e nacional, analisada de um modo iconoclasta, auto-irónico, sabedor de um dizer-entre-linhas para fintar o censor que não redundasse em língua-de-pau, algo que não se fazia em nenhum jornal de Lisboa ou Porto. A única concorrência possível vinha do Jornal de Letras e Artes, que partilhava alguns colaboradores, se não mesmo algumas afinidades, com o “espírito & etc”. Depois de 1968, a lufada de ar fresco com a mudança da cadeira do poder permitiu alguns arrojos à imprensa da capital, e quando o Diário de Lisboa convida Cardoso Pires para dirigir um suplemento cultural aggiornato, é de novo a VST que ele recorre para o que viria a ser uma espécie de extensão desse & etc beirão, ou seja, um suplemento com a mesma liberdade mas num jornal de topo de Lisboa.
A lista de colaboradores mais ou menos regulares deste & etc é um who's-who da geração de gente das letras e artes que despontava ou despontara nessa década, e alguns deles prestam testemunho nesta edição: Rocha de Sousa (espantoso e esquecido capista na Ulisseia de VST, e o único crítico capaz de perceber o brilhantismo de Eduardo Batarda como ilustrador de livros), Jorge Silva Melo, Almeida Faria, Aníbal Fernandes, Liberto Cruz, Nuno Júdice, Lauro António ou João Medina, e mesmo esta lista limitada é longa de mais para aqui ser reproduzida. As reproduções de trechos literários, em particular, são verdadeiras pepitas dentro deste já valioso tesouro, incluindo autênticas (re)descobertas ou raridades irrepetíveis (como um excerto do proibidíssimo Apresentação do Rosto de Herberto em 1968).
Numa altura em que o jornalismo cultural na imprensa escrita, herdeiro desta tradição de “suplementos”, está com os dias contados, à míngua num espaço cada vez mais reduzido de páginas e caracteres, a possibilidade que esta edição nos dá de apreciar a qualidade dessa curta aventura (terminada em 1971), testemunho de um desejo furioso de que as páginas dos jornais fossem um caminho até uma iluminação superior em tempo de trevas ou luz medíocre, deve servir-nos de exemplo mas também de guia para um esperado “ressurgimento” do formato.