O medo é um vírus e a informação é a vacina
O medo é mais maléfico do que o vírus, porque nos impede de responder à epidemia com inteligência e provoca patologias sociais. Perante o desconhecido, a psicose do contágio torna-se mais epidémica do que a própria doença
No seu discurso de tomada de posse, a 4 de Março de 1933, o Presidente norte-americano Franklin Roosevelt começou por dizer aos cidadãos: “A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo.” Não era um jogo de palavras. Era o lema que propunha ao país para sair da Grande Depressão. O medo paralisa a acção. O medo é mais maléfico do que o vírus, porque nos impede de responder à epidemia com inteligência e provoca graves patologias sociais.
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No seu discurso de tomada de posse, a 4 de Março de 1933, o Presidente norte-americano Franklin Roosevelt começou por dizer aos cidadãos: “A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo.” Não era um jogo de palavras. Era o lema que propunha ao país para sair da Grande Depressão. O medo paralisa a acção. O medo é mais maléfico do que o vírus, porque nos impede de responder à epidemia com inteligência e provoca graves patologias sociais.
“O medo é um vírus e a sua vacina é a informação”, avisa o virologista italiano Roberto Burioni. E, dos dois vírus, o do medo é que mais depressa circula. O pânico é altamente contagioso. Seria absurdo minimizar a ameaça da Covid-19 (designação da doença), abusando, por exemplo, do paralelo com a gripe, que mata centenas de milhares de pessoas por ano. A Covid-19 não é “mais uma gripe”, mas também não é a peste, precisa Burioni.
A diferença é crucial. A gripe mata, mas é um velho conhecido e dispomos de vacinas. Ao contrário, ainda pouco sabemos da Covid-19. E, perante o desconhecido, a psicose do contágio torna-se mais epidémica do que a própria doença. Um dos factores que leva do medo ao pânico é a diferente percepção do risco, entre risco aparente e risco real. A gripe matará este ano milhares de italianos. Nem por isso todos correm a vacinar-se. “Mas se aparecesse uma vacina contra a Covid-19, esgotar-se-ia na Itália em duas horas”, diz Elena Pariani, uma das coordenadoras da doença na Lombardia. Em relação à epidemia, “há neste momento uma percepção de risco muito superior ao risco real”.
As pessoas precisam de ser “lembradas”. Deixando as pestes do passado, convém recordar que a mais mortífera pandemia da História terá sido a pneumónica (dita gripe espanhola) de 1918-19, com dezenas de milhões de mortos. A gripe asiática atravessou o mundo em 1957, fazendo dois milhões de mortos. A SARS, produzida por um outro coronavírus em 2002-2003, foi anunciada como apocalíptica mas vitimou pouco mais de 700 pessoas.
A Covid-19 contagia mais depressa do que a SARS, mas tem menor taxa de letalidade. É um tipo de doença com que, em princípio, o mundo depressa aprenderá a lidar. É bom que os europeus percebam que têm os sistemas sanitários mais aptos para enfrentar a pandemia. E que o pânico seria o maior inimigo do bom funcionamento do sistema de saúde.
É normal a ansiedade das pessoas com o risco de contágio. As pessoas precisam de saber o que fazer e as precauções a tomar. E precisam de informação credível, que afaste a suspeita de que os factos estão a ser escondidos. Já o bombardeamento noticioso contínuo aumenta a ansiedade e inibe o raciocínio. O maior risco é sempre o “contágio emotivo” que provoca comportamentos de insegurança e, ao mesmo tempo, de intolerância e de racismo.
“Os chineses somos nós”
A epidemia traz outros riscos. As reacções de medo da população podem incentivar os governos a responder em escalada. As acções súbitas e drásticas nem sempre têm o efeito desejado e aumentar a ansiedade. “É preciso ter a noção de que uma pandemia pode ter um impacto duradouro na nossa vida quotidiana, desorganizar os equilíbrios sociais e acentuar as circunstâncias de vulnerabilidade”, previne o médico francês Emmanuel Hirsch. E levantar, ao mesmo tempo, problemas de ética e de liberdades. Há métodos drásticos utilizáveis em regimes autoritários mas que são impossíveis em regimes democráticos.
Tivemos ao longo deste mês o desastroso exemplo da Itália, com o que todos, governantes e governados, podem aprender. O governo italiano oscilou entre minimizar e dramatizar a epidemia. Para tranquilizar a opinião pública, o governo e os governadores do Norte tomaram medidas drásticas que criaram mais alarme do que confiança. Ao décimo apelo tipo “o pânico é injustificado”, os italianos compreenderam que deveriam preparar-se para o pior, escreveu La Repubblica.
Abriu-se um conflito nas regiões económicas vitais. As normas mais drásticas contra o contágio também ameaçaram mudar as regras sociais, cortar a sociabilidade das pessoas, o que expõe sobretudo as mais vulneráveis. Note-se que houve também notáveis exemplos de entreajuda e solidariedade.
O excesso de zelo multiplicou o alarmismo, patente no “assalto” aos supermercados. Em Milão e Génova, surgiu inclusive uma “psicose da fome” e as famílias acumularam em casa quantidades inauditas de água e de alimentos de longa duração. Poderão viver anos a consumir as conservas de atum que compraram.
Ao início, houve surtos de sinofobia. Mas a situação rapidamente se inverteu. Os italianos infectados foram contaminados por outros italianos que não tinham sequer ido à China. Passaram eles próprios a temer o contágio pelo vizinho. “Agora, os chineses somos nós”, dizem perante as interdições de viagens ao estrangeiro. E o Sul vinga-se no Norte rico. O governador da Sicília avisou os habitantes do Norte que não são bem-vindos ao Sul.
Outras ilusões morreram por estes dias. A tentação de encerramento - e não só por italianos - e a descoberta amarga de que já não há fronteiras impenetráveis.
A outra Itália
Termino com a passagem final de uma carta dirigida aos alunos pelo presidente do Liceo Volta de Milão, no momento em que as aulas foram suspensas.
“Não há razões para tomar de assalto os supermercados e as farmácias, deixai as máscaras para quem está doente e delas precisa (…). Um dos maiores riscos em situações deste género é o envenenamento da vida social e das relações humanas, a barbarização da vida civil. O instinto atávico quando nos sentimos ameaçados por um inimigo invisível é vê-lo por toda a parte, o perigo é olhar os nossos semelhantes como uma ameaça, como um potencial agressor. Ao contrário das epidemias dos séculos XIV e XVIII [em Milão], temos do nosso lado a medicina moderna, e acreditai que não é pouco, os seus progressos, as suas certezas. Usemos o pensamento racional de que ela é filha para preservar o bem mais precioso que temos, o nosso tecido social, a nossa humanidade. Se não o conseguirmos fazer, a peste terá verdadeiramente vencido.”