Os milénios da Arrábida, passo a passo

Pelos trilhos do Parque Natural da Arrábida, viaja-se à procura de pistas que liguem o homem de hoje ao da Pré-História.

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O dia não é certo. Vai rodando. Certo é que, uma vez por ano, eles aparecem. Toc, toc, toc, toc. “Muito lindo. Lindo, lindo.” Teresa já os viu chegar dezenas de vezes. Vêm em romaria, a cavalo, mula ou carroça, desde Sintra, seguindo a linha do mar até ao átrio fantasma do cabo Espichel. Como num clássico western, patas negras marcadas na areia, não estivéssemos nós precisamente no Oeste. Depois há os peregrinos de Agosto e de Setembro, da zona de Sesimbra, e os caminhantes solitários ou em pequenos grupos que ironicamente vêm desaguar à finisterra – este sítio sem saída – à procura de uma saída nas suas cabeças. Passam as hospedarias, com as janelas seladas pelo cimento há anos, em direcção ao pôr do sol. “É muito lindo. Lindo, lindo”, repete Teresa Patrício, gerente do café I Love Espichel, um amor que não se explica, mas que também não precisa, porque Teresa nasceu e cresceu aqui.

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O dia não é certo. Vai rodando. Certo é que, uma vez por ano, eles aparecem. Toc, toc, toc, toc. “Muito lindo. Lindo, lindo.” Teresa já os viu chegar dezenas de vezes. Vêm em romaria, a cavalo, mula ou carroça, desde Sintra, seguindo a linha do mar até ao átrio fantasma do cabo Espichel. Como num clássico western, patas negras marcadas na areia, não estivéssemos nós precisamente no Oeste. Depois há os peregrinos de Agosto e de Setembro, da zona de Sesimbra, e os caminhantes solitários ou em pequenos grupos que ironicamente vêm desaguar à finisterra – este sítio sem saída – à procura de uma saída nas suas cabeças. Passam as hospedarias, com as janelas seladas pelo cimento há anos, em direcção ao pôr do sol. “É muito lindo. Lindo, lindo”, repete Teresa Patrício, gerente do café I Love Espichel, um amor que não se explica, mas que também não precisa, porque Teresa nasceu e cresceu aqui.

Por mais que o hábito das romarias tenha adormecido nas últimas décadas – na segunda metade do século XVIII, aconteciam mais de 20 celebrações por ano –, não faltam hoje caminhantes livres nos trilhos que vão dar a Espichel. “Ainda há uns dias, eram uns 500 escuteiros. Ficaram a dormir debaixo das arcadas, com chuva. Não há outro sítio para dormir”, conta Teresa, que assiste a tudo do seu pequeno balcão.

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Não é com o objectivo de trazer mais exploradores ao Parque Natural da Arrábida, aliás, que a empresa Biotrails e as câmaras de Palmela, Sesimbra e Setúbal se organizaram para lançar no final de Março o Arrábida Walking Festival, que na sua primeira edição se dedica à arqueologia local [serias depois adiado pela pandemia]. “É uma questão de trazer à superfície um património que está escondido. Não é só caminhar, mas caminhar com atenção ao pormenor, com informação, porque para se preservar a natureza, é preciso conhecer, saber que estão ali espécies endémicas ou vestígios que devem ser respeitados”, explica José Cunha, da Biotrails, projecto direccionado para a observação da biodiversidade. E “havia falta de um trabalho de fundo neste território”.

Fogo, comércio e oração

É então através de nove percursos que este festival convida a conhecer melhor a paisagem natural, cultural e civilizacional da Arrábida, lugar de pescadores, monges, escritores, gente do trabalho e da contemplação. Mas também, e recuando ainda mais, “um território que viu aparecer e desaparecer espécies” e que “é habitado desde o Paleolítico Inferior”, o período mais antigo da Pré-História do homem, em que o fogo, a pedra e o bronze eram reis.

Imaginemo-lo então nesta zona alta de Palmela, com a foz do Sado de um lado e o estuário do Tejo do outro, circundando os arbustos entre aparições de calcário e de arenito, aquela rocha entre o amarelo e o ocre, característica da região. Estamos no Castro de Chibanes, na serra do Louro, com uma sensação de fim do mundo semelhante à do cabo Espichel. Chegados de um trilho curto, aqui, o fim prolonga-se na terra. Mas é fim pela altitude.

Chibanes é um dos pontos de passagem no circuito do festival e um dos lugares de vida da região mais bem estudados pela arqueologia. A poucos quilómetros, fica o lugar de morte que se acredita estar associado a este povoado, as Grutas Artificiais de Quinta do Anjo. Do lado norte, haveria de surgir, milhões de anos depois da descoberta do fogo, uma muralha de defesa; do lado sul, o maciço rochoso desempenha naturalmente esse papel. Foi também “detectada aqui a presença de fornos metalúrgicos”, onde se trabalhavam metais externos à Arrábida, como o cobre, sinal de que este seria um local de contacto e de comércio entre povos. “Um dos produtos [comercializados] seriam as taças campaniformes”, relata Raquel Santos, arqueóloga do município de Palmela, que coloca Chibanes no centro de um mapa comercial do Mediterrâneo, com uma ligação particularmente intensa a Cádis. Também por aqui passaram muçulmanos e romanos, longe de imaginar que um dia, no alto de Chibanes, soariam bandos de pardais em dueto com motores de automóveis, de um lado para o outro, entre o mar e a indústria.

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Além deste percurso, que liga a vida e a morte num total de 11,4 km, o festival também permite conhecer pontos emblemáticos como o Convento de São Paulo e dos Capuchos, o Palácio da Bacalhôa, o Forte de Santiago, a Lapa do Fumo ou a praia da Baleeira, que já foi ponto de pesca à baleia e abrigo de embarcações romanas. Nesta manhã escura não há ninguém, a pesca é outra, os barcos são pesados e navegam longe. Mas é o vazio que permite imaginar quem um dia andou por terras da Arrábida e ver como nós, milhares de anos depois, caminhamos pelos mesmos trilhos. Já não à procura do fogo, mas muito à procura de tempo.