América, a terra de todos os sonhos
O conceito de terceiro país seguro aplicado pelos EUA para afastamento forçado [de imigrantes] é inusitado. Não é possível dizer-se que o México é terceiro país seguro quando as organizações apontam para a existência de mais de 60 mil desaparecimentos forçados, à sombra de um nível de impunidade altíssimo.
As imagens de moles humanas a tentarem atravessar a fronteira entre o México e os EUA e das crianças separadas dos seus pais desapareceram dos nossos ecrãs há algum tempo, mas os problemas continuam.
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As imagens de moles humanas a tentarem atravessar a fronteira entre o México e os EUA e das crianças separadas dos seus pais desapareceram dos nossos ecrãs há algum tempo, mas os problemas continuam.
Chegam de El Salvador, da Guatemala, das Honduras, da Venezuela, do México e, recentemente, têm até chegado alguns do Brasil. A pobreza, a conflitualidade e instabilidade política, a violência alimentada pelas redes de crime organizado, não lhes deixam outra opção que não partir.
Esta semana integrei a delegação da sub-Comissão de Direitos Humanos do Parlamento Europeu de acompanhamento do evoluir da situação na fronteira entre El Paso, no Texas, e Ciudad Juárez, no México.
De um e do outro lado da fronteira, as descrições são dolorosas. Ouvir os requerentes de asilo, advogados, ativistas, ONG e autoridades, leva-nos a uma longa lista de atropelos e a apreciar a forma como a sociedade civil e as organizações internacionais se mobilizam para prestar apoio.
O relatos sobre as mais variadas violações de princípios básicos vão desfilando em histórias onde pontuam o poder discricionário da polícia de fronteira dos EUA, as detenções assumidas como procedimento (quando deveriam ser o último recurso), ou a violação do princípio de non-refoulement, procedendo à remoção imediata destas pessoas para o México, a Guatemala ou as Honduras, países de onde muitos fugiram, por serem vítimas de violência, violação, rapto e/ou extorsão promovidos por cartéis de droga e outras redes criminosas.
O conceito de terceiro país seguro aplicado pelos EUA para efeito de afastamento forçado é inusitado. Não é possível dizer-se que o México é terceiro país seguro quando as organizações apontam para a existência de mais de 60 mil desaparecimentos forçados, à sombra de um nível de impunidade altíssimo. E o que dizer das Honduras ou da Guatemala?
Até os brasileiros, que não dizem uma palavra em espanhol, são alvo de devolução ao México, enquanto aguardam a decisão de um tribunal dos EUA sobre o seu processo de asilo. O que cria sérias dificuldades de comunicação e os torna vulneráveis a todo o tipo de abusos e perigos.
Os processos de requerimento de asilo são completamente inquinados pela dificuldade que aqueles que não têm recursos enfrentam para ir às sessões no tribunal ou para aceder a um advogado e a um intérprete. Circunstâncias em que entender os procedimentos e preencher corretamente os requerimentos se mostra impossível para grande número de requerentes.
As constantes mudanças de procedimentos dificultam a compreensão e o papel dos voluntários e das organizações da sociedade civil na prestação informação.
O sistema foi desenhado quando a população migrante era esmagadoramente constituída por homens sós e não se adaptou à nova realidade, em que a maioria são famílias. O que faz com que os processos de diversas pessoas da mesma família sejam apreciados individualmente e seja dado asilo apenas aos elementos diretamente vítimas de perseguição ou ameaça, resultando na separação de pais e filhos.
Quanto mais difíceis são as condições de acesso ao asilo, mais enriquecem as redes de traficantes e o negócio dos advogados especialistas em imigração.
Uma resposta mais humanizada não ficaria mais cara aos impostos dos cidadãos dos EUA. O que é despendido nos contratos com privados, por requerente detido, seria seguramente suficiente.
Sem as organizações da sociedade civil, que se mobilizam na criação de abrigos, alimentação, apoio médico, informação sobre o processo de asilo, prestação de apoio jurídico, tudo seria muito pior, mas a capacidade de resposta é limitada face às necessidades.
O caso de um jovem brasileiro que encontrei, em Juárez, acompanhado da mulher e do filho, é ilustrativo. Chegaram ao México e atravessaram a fronteira num dos pontos de abertura do muro. Entregaram-se à Polícia de Fronteira dos EUA e apresentaram o seu requerimento de asilo. Foram integrados no Programa de Proteção de Migrantes e devolvidos ao México. Estão alojados num centro de acolhimento providenciado por uma organização confessional. Não falam espanhol para se fazerem entender e não dominam o inglês para enfrentarem o Tribunal de Emigração. Não têm advogado nem intérprete.
Não esperam resolver o seu caso na primeira sessão no Tribunal de Imigração. Provavelmente demorará mais de dezoito meses e no final, dada a taxa de recusas, o mais certo é verem o asilo negado e serem extraditados.
De Juárez a El Paso são dez minutos. A terra de todos os sonhos fica logo ali…