Sobre decência e vergonha
A confiança dos cidadãos é a enxada de trabalho dos juízes. Sem ela, sejamos verdadeiros, não andamos aqui a fazer nada.
Há mais de 500 anos, no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, a justiça foi representada na alegoria de um velho juiz que chegou ao cais todo bem-falante e cheio de importância e acabou enxovalhado a remar para o inferno, depois do anjo lhe ter negado um lugar na barca do céu, por causa da sua vida de subornos e riquezas escondidas. Já se sabia que os juízes podiam acabar todos no inferno. Pensava-se é que iam a cavalo nos advogados e nas testemunhas e não montados nos seus próprios pecados.
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Há mais de 500 anos, no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, a justiça foi representada na alegoria de um velho juiz que chegou ao cais todo bem-falante e cheio de importância e acabou enxovalhado a remar para o inferno, depois do anjo lhe ter negado um lugar na barca do céu, por causa da sua vida de subornos e riquezas escondidas. Já se sabia que os juízes podiam acabar todos no inferno. Pensava-se é que iam a cavalo nos advogados e nas testemunhas e não montados nos seus próprios pecados.
As recentes suspeitas de manipulação na distribuição de processos e dúvidas sobre a imparcialidade das decisões são chocantes e cobrem de vergonha todos os juízes decentes. É insuportável a quebra de confiança nos procedimentos que visam assegurar que não há juízes escolhidos à medida dos interesses dos processos. Se no final não houver uma boa explicação e isto tudo não tiver passado de um pesadelo, se vier a saber-se que alguém teve comportamentos ilícitos, incompatíveis com os deveres mais fundamentais da condição de juiz, peço desculpa, não há outra maneira de dizer: rua com essas pessoas!
Os juízes foram os primeiros a exigir uma acção imediata e enérgica de apuramento de responsabilidades disciplinares ou criminais. Algumas pessoas, dentro e fora da judicatura, estranharam a contundência dessa reacção. Não sei porquê. A confiança dos cidadãos é a enxada de trabalho dos juízes. Sem ela, sejamos verdadeiros, não andamos aqui a fazer nada. Por isso, se não houver agora uma intervenção, rigorosa, transparente e implacável do Conselho Superior da Magistratura, que é autoridade que tem por primeira missão zelar pela independência do poder judicial, todos os alicerces que sustentam a integridade do sistema de justiça podem colapsar, com consequências imprevisíveis.
Que fazer, então?
Primeiro que tudo, imediatamente, uma sindicância exaustiva e rigorosa aos procedimentos de distribuição na Relação de Lisboa. Começando naqueles processos que estão sob suspeita e avançando depois para os outros, verificar, caso a caso, se houve distribuição sem cumprimento das regras legais, quem a ordenou, porquê e que influência isso teve ou não na decisão final. O sistema electrónico regista todas as operações de entrada, distribuição e alteração manual. Não é nada do outro mundo descobrir o que aconteceu.
Ao mesmo tempo, é necessário obter, de todos os outros tribunais, informação detalhada sobre os procedimentos de distribuição e da resolução das situações pontuais que requerem alterações manuais. Também aí, se existirem situações anómalas, indiciadoras de actos ilícitos, devem ser reportadas, rigorosamente investigadas e, se for caso disso, punidas.
Essa sindicância terá de acabar na correcção e uniformização dos procedimentos, para que, no futuro, a distribuição seja um acto público, fiscalizado por um juiz e integralmente documentado, com base em critérios objectivos, pré-determinados, transparentes e sindicáveis, que assegurem a aleatoriedade na atribuição dos processos. Qualquer pessoa deve poder saber porque é que um processo foi parar às mãos deste ou daquele juiz e, se for parte interessada, poder ainda impugnar o acto.
O Conselho Superior da Magistratura é um órgão independente, com representantes dos juízes e uma maioria de membros designados pelo Presidente da República e pelo Parlamento. Ao contrário do que se diz, não é um órgão laxista nem corporativo. Sei do que falo porque estive lá 3 anos. A “expulsão” de 33 juízes nos últimos 17 anos prova esse rigor e exigência. Neste momento de vital importância, impõe-se uma operação de limpeza de grande envergadura, de alto a baixo, sem portas fechadas nem “vacas sagradas”, a bem da restauração da confiança no regular funcionamento da justiça, que é uma instituição essencial para o Estado de direito democrático. Tudo o que seja menos que isso é pouco. E se é para doer, que doa tudo de uma vez.
Não se trata de uma caça às bruxas. As pessoas visadas, se não tiverem errado, têm direito de se defenderem e verem o seu bom nome restaurado. Os juízes que trabalham com decência e honestidade, têm o direito de andar nos tribunais de cabeça levantada. E os cidadãos, esses em primeiro lugar, têm o direito de confiar em juízes íntegros e imparciais.