A desocidentalização do ocidente
Se europeus e americanos não restaurarem a aliança transatlântica, então a desocidentalização será inexorável. Putin e Xi Jiping agradecem.
Todos os anos, em Fevereiro, num luxuoso hotel de Munique reúne-se a fina flor da política internacional: chefes de estado e de governo, ministros dos negócios estrangeiros e da defesa, think tankers e académicos avulsos. E, claro, a imprensa internacional em peso.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Todos os anos, em Fevereiro, num luxuoso hotel de Munique reúne-se a fina flor da política internacional: chefes de estado e de governo, ministros dos negócios estrangeiros e da defesa, think tankers e académicos avulsos. E, claro, a imprensa internacional em peso.
Munique está para a política como Davos para a economia. Estive lá três vezes, em condições diferentes e testemunhei sempre a mesma coisa: a Conferência de Segurança de Munique é o melhor barómetro do estado do mundo. Este ano, pelo que li, não foi diferente e o estado do mundo não está bom. Lá estiveram os presidentes francês e alemão, os secretários de estado e da defesa norte americanos, o ministro dos negócios estrangeiros chinês e todo essa gente que se autointitula de “comunidade estratégica”. O tema central dava pelo nome de um estranho neologismo: Westlessness. Em português, “menos ocidente”, ou numa tradução livre, “desocidentalização”. Os organizadores definiram-no, basicamente, como o sentimento generalizado de inquietação e mal-estar perante a crescente incerteza sobre o futuro do ocidente.
Ora, o ocidente não é uma noção geográfica. É um ideal político, baseado nos princípios e valores das revoluções francesa e americana do século XVIII: o autogoverno, a separação de poderes, a liberdade de expressão e o respeito pelos direitos humanos. Um ideal que triunfou e sobre o qual se fundou a ordem ocidental depois da segunda guerra. E a ordem global, depois da guerra fria. Um mundo fundado sobre a economia de mercado e o estado de direito, a democracia liberal e a ordem multilateral. Para muitos, em países pobres, regimes autoritários ou estados em guerra, o modelo ocidental continua a ser um símbolo de paz, liberdade e prosperidade. E a atracção do ocidente não é só a riqueza material, é também o ideal, o sonho de uma vida melhor. E é por isso que os emigrantes sacrificam tudo, às vezes a própria vida, para chegar às fronteiras da Europa e dos Estados Unidos.
Ora é esse modelo, antes triunfante, que está hoje a perder influência. Atacado, do exterior, pela emergência de potências revisionistas, iliberais ou autoritárias como a China ou a Rússia. Potências que receiam o contágio dos ideais democráticos e os atacam por todos os meios: o poder económico, a ciberguerra, a manipulação das redes sociais, ou a interferência digital nas eleições das democracias ocidentais. É um combate. Mas o ocidente parece não querer combatê-lo. E assim vai mudando a dinâmica do poder global e crescendo a desocidentalização do mundo.
Mas pior que isso, o ocidente é, hoje, atacado do seu interior. Pela conivência de uns e a complacência de outros, dentro do próprio mundo ocidental. Nos Estados Unidos é do próprio presidente que partem os ataques a alguns dos princípios formais e informais da tradição democrática americana. Por outro lado, a estratégia da America First tem na base a ideia do primado da política interna, mas ao mesmo tempo, a de um poder sem limites na política externa. Ora, um país todo poderoso não precisa de regras, de tratados, ou de organizações internacionais. Isto é, não precisa da ordem multilateral que os Estados Unidos criaram. É por isso que rejeita o livre comércio e defende o protecionismo. E é por isso que rejeita as alianças permanentes. Porque um país todo poderoso não precisa, sequer, de aliados. Por isso, pode quebrar a confiança entre os Estados Unidos e a Europa e fracturar a aliança transatlântica que foi sempre o pilar fundamental do ocidente. O que Trump talvez não perceba é que ao desocidentalizar o ocidente está a reforçar a desocidentalização do mundo e a favorecer o que, supostamente, não quer: o declínio americano.
Mas os europeus também não ajudam. A Europa está dividida e fraca. Dividida entre norte e sul a propósito do Euro, entre leste e oeste a propósito dos refugiados e a solidariedade europeia inscrita nos tratados está longe de ser uma realidade. Fraca porque atravessada por nacionalismos populistas alguns já no poder e a atacar também eles os princípios da democracia liberal. Mas fraca, sobretudo, porque muitos europeus continuam convencidos que podem continuar a ter prosperidade e segurança, sem identidade política e sem pagar a sua defesa. Se europeus e americanos não compreenderem isto, se não restaurarem a aliança transatlântica e não estiverem confiantes no seu ideal e prontos para esse combate, então a desocidentalização será inexorável. Putin e Xi Jiping agradecem.