“A ciência, tal como o amor, é um meio para alcançar a transcendência”
O novo livro de Ann Druyan chega a 31 de Março às livrarias portuguesas editado pela Gradiva, ao mesmo tempo que vai sendo publicado pelo mundo inteiro. Baseando-se na nova série televisiva Cosmos – Mundos Possíveis, de que Ann Druyan é também criadora, o livro narra a história do Universo desde o Big Bang passando pela transformação da matéria em vida. Fica um excerto do prólogo.
Todos sentimos o receio que as sombras do presente projectam sobre o nosso futuro. Uma parte de nós sabe que temos a obrigação de agir, ou acabaremos por condenar os nossos filhos a perigos e dificuldades que nós próprios nunca tivemos de enfrentar. Que poderemos fazer para evitar caminhar de olhos fechados para uma catástrofe ambiental ou nuclear, com efeitos irreversíveis e capaz de destruir a nossa civilização e inúmeras outras espécies? Como aprender a dar mais valor às coisas sem as quais não podemos viver – o ar, a água, aquilo de que é feita a vida sustentável na Terra, o futuro – do que damos ao dinheiro e a meia dúzia de benefícios a curto prazo? Só um despertar espiritual global pode transformar-nos naquilo em que temos de tornar-nos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Todos sentimos o receio que as sombras do presente projectam sobre o nosso futuro. Uma parte de nós sabe que temos a obrigação de agir, ou acabaremos por condenar os nossos filhos a perigos e dificuldades que nós próprios nunca tivemos de enfrentar. Que poderemos fazer para evitar caminhar de olhos fechados para uma catástrofe ambiental ou nuclear, com efeitos irreversíveis e capaz de destruir a nossa civilização e inúmeras outras espécies? Como aprender a dar mais valor às coisas sem as quais não podemos viver – o ar, a água, aquilo de que é feita a vida sustentável na Terra, o futuro – do que damos ao dinheiro e a meia dúzia de benefícios a curto prazo? Só um despertar espiritual global pode transformar-nos naquilo em que temos de tornar-nos.
A ciência, tal como o amor, é um meio para alcançar a transcendência, a experiência de nos elevarmos à plenitude da vida. A abordagem científica da natureza e a minha compreensão do amor são semelhantes: o amor exige que vamos além das projecções infantis das nossas esperanças e medos pessoais, até sermos capazes de abranger a realidade do outro. Um amor destemido que não hesite em ir mais fundo, mais alto.
É assim precisamente que a ciência ama a natureza. Esta ausência de destino final, uma verdade absoluta, é o que faz da ciência o método certo de uma busca sagrada. É uma lição de humildade sem fim. A vastidão do Universo – e do amor, aquilo que torna essa vastidão suportável – está fora do alcance dos arrogantes. O cosmos só aceita de forma plena os que ouvem com atenção a voz íntima que lhes sussurra que podem não ter razão. A realidade tem de importar mais do que aquilo em que queremos acreditar. Mas como distinguir a verdade dos nossos desejos?
Conheço uma maneira de abrir as cortinas de escuridão que impossibilitam uma experiência completa da natureza. É fácil de explicar. São as regras básicas que abrem caminho na ciência: testar as ideias por meio da experiência e da observação. Conservar apenas as que passarem o teste e construir novas ideias sobre elas. Rejeitar as que falharem. Aceitar os factos e as provas, levem onde levarem. E questionar tudo, incluindo a autoridade. Se obedecermos a estas regras, o cosmos abrir-se-á perante nós.
Se as múltiplas peregrinações através das quais procuramos compreender as circunstâncias actuais do Universo, a origem da vida e as leis da natureza não constituem uma missão espiritual, não sei se haverá outra coisa digna desse nome.
Eu própria não sou cientista, apenas uma coleccionadora de histórias. As minhas preferidas são as dos descobridores que nos têm ajudado a encontrar o caminho no grande oceano negro e as das pequenas ilhas de luz que aí nos deixaram.
São essas as que aqui apresento, as dos investigadores que se aventuraram no oceano sem fundo do cosmos. Acompanhe-me aos mundos que eles descobriram – aos mundos perdidos, aos que continuam a florescer e aos que ainda têm de ser descobertos.
Vou contar a história de um génio desconhecido que enviou uma carta para um futuro a 50 anos de distância, e que conduziu a missão Apolo à Lua. E outra do cientista que contactou uma antiga forma de vida que, tal como nós, usa uma linguagem simbólica para comunicar. Estes seres que fazem cálculos matemáticos informados pela física e pela astronomia têm um compromisso com uma democracia consensual que envergonha a nossa.
Gostava de levar o leitor a esses mundos que a ciência nos permitiu imaginar, trazer de volta à vida ou até visitar: num chovem diamantes, outro é uma antiga cidade no fundo do mar onde pode ter começado a vida na Terra. Gostaria que testemunhasse o que é talvez a relação estelar mais íntima do cosmos, duas estrelas unidas num abraço eterno por uma ponte de fogo com 13 milhões de quilómetros.
Vamos escutar atrás da porta da rede oculta que forma uma longa colaboração entre os diferentes reinos da vida. Também quero aproveitar para falar de um cientista pouco conhecido que nos entregou a chave de um mundo perdido havia muito. Há mais de 200 anos, esse homem [o físico inglês Thomas Young, um dos decifradores dos hieróglifos e primeiro autor da experiência das duas fendas, que está no coração da teoria quântica] revelou um buraco lógico na realidade que continua por explicar, apesar de todos os esforços de Einstein.
A mais triste de todas as histórias é a da paixão de um homem que escolheu uma morte horrível e lenta [o botânico russo Nikolai Vavilov, vítima de Estaline em 1943, assim como alguns colaboradores seus por não terem seguido a pseudociência de Lysenko] às mãos de um dos mais terríveis assassinos da História. Podia ter-se salvo com uma mentira científica, mas não foi capaz. Os discípulos escolheram o martírio na sua companhia para proteger o que para eles pode não ter passado de uma abstracção, as gerações vindouras. Nós.
Isto traz-nos ao mundo possível que a mim me parece mais empolgante – o futuro que ainda podemos ter. O mau uso da ciência ameaça a nossa civilização, mas a ciência também tem poderes redentores. Pode limpar uma atmosfera planetária com demasiado dióxido de carbono. Pode libertar a vida para neutralizar toxinas que espalhámos despreocupadamente. Numa sociedade que aspira a ser uma democracia, um público consciente e motivado pode concretizar este mundo possível.
Todas estas histórias nos tornam mais optimistas em relação ao futuro. Através delas senti de forma mais intensa o encanto da ciência e de estar viva no momento presente, nestas coordenadas particulares do espaço-tempo, menos só, mais em casa, aqui no cosmos.