Berlim e os fantasmas do passado (do Brasil, da Galiza e de todo o lado)
A escravatura brasileira em Todos os Mortos; as superstições galegas em Lúa Vermella; e os mitos marítimos em Undine — os 70 anos da Berlinale estão assombrados pelas consequências do passado.
O ano de 1899, dez anos depois da implantação da república brasileira e da abolição da escravatura: o ano em que o Brasil podia ter escolhido outro caminho, mas não o fez, como se ouviu durante a conferência de imprensa do filme que Caetano Gotardo e Marco Dutra trouxeram à competição de Berlim e a abalaram com força. Todos os Mortos decorre na transição do século XIX para o século XX, e confronta a memória da colonização e da escravatura numa estufa paulista opressiva e claustrofóbica onde uma família colonizadora definha e uma família de escravos libertados procura o seu lugar.
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O ano de 1899, dez anos depois da implantação da república brasileira e da abolição da escravatura: o ano em que o Brasil podia ter escolhido outro caminho, mas não o fez, como se ouviu durante a conferência de imprensa do filme que Caetano Gotardo e Marco Dutra trouxeram à competição de Berlim e a abalaram com força. Todos os Mortos decorre na transição do século XIX para o século XX, e confronta a memória da colonização e da escravatura numa estufa paulista opressiva e claustrofóbica onde uma família colonizadora definha e uma família de escravos libertados procura o seu lugar.
Rodeados pelos mortos que se convocam a todo o momento, os destinos dos Soares — uma família de fazendeiros na penúria, cujas filhas se entregaram uma à religião e a outra à loucura — e dos Nascimento — antigos escravos dos Soares que se emanciparam com as suas crenças africanas — parecem estar fadados a cruzarem-se tragicamente. E se pensam que nada disto tem a ver com o Brasil de hoje em dia, estão muito enganados, porque Gotardo e Dutra, colegas de escola de cinema que só após uma amizade de 20 anos assinam o primeiro filme em conjunto, pensam sempre este passado em articulação com o nosso presente. Dutra, em particular, tinha-o já feito ao construir As Boas Maneiras, que dirigiu com a cúmplice Juliana Rojas, como um filme de género a propósito da luta de classes, mas aqui a referência é mais trabalhada.
Fotografado pela mestra Hélène Louvart, Todos os Mortos vai buscar inspiração ao teatro de Tchékhov ou Ibsen, mas também de Tennessee Williams ou Edward Albee, usando como mote a ideia da “casa assombrada” pelos fantasmas do passado que se manifestam quando menos se espera. E, quem sabe, não é a casa em si onde as irmãs Soares se encerram, fechando-se ao mundo que progride, um próprio fantasma que sobrevive no Brasil de Bolsonaro, país em permanente combate com os seus próprios estereótipos?
Uma alegoria apocalíptica
Não é só em Todos os Mortos que a ideia do passado como assombração permanente do nosso presente se tem manifestado. Claro que Berlim sempre foi um festival atento aos temas, mas este ano, passe o trocadilho, o cinema ganha ao tema — já falámos aqui de Jia Zhang-ke, Cristi Puiu ou Kelly Reichardt, terá agora de se falar do espanhol Lois Patiño e Lúa Vermella (Forum). Onde um trabalho de inspiração abertamente documental sobre os rituais antropológicos e as crenças da Costa da Morte galega se abre a uma densíssima alegoria apocalíptica, entre a Máscara da Morte Vermelha de Corman e o Sacrifício de Tarkovski, sobre o desaparecimento de uma aldeia, de uma cultura, de um passado.
Um desaparecimento que tanto pode ser devido ao progresso, às alterações climáticas, ou à própria natureza — Patiño deixa isso em aberto ao espectador, porque o que lhe interessa é criar um espaço para reflectir sobre o mundo que nos rodeia, sobre a relação entre o real e o metafísico, usando como ponto de partida a personagem verídica do Rubio, um mergulhador galego conhecido por resgatar os corpos perdidos no mar e que interpreta uma versão de si próprio que possui a chave para impedir uma série de fenómenos catastróficos. Belíssimo e inquietante filme, que confirma a dimensão onírica como central ao novo cinema galego.
E já que falamos de mergulhadores; fazemos por aí a ponte com Undine (Competição), um dos mais aguardados títulos desta Berlinale, e com bons motivos. É o novo filme de Christian Petzold, o autor de Barbara, Phoenix e Em Trânsito, e reúne o par formado neste último filme por Paula Beer e Franz Rogowski. Se Em Trânsito era mais centrado em Rogowski, Undine é mais na actriz, aqui no papel de uma misteriosa historiadora berlinense que se apaixona por um mergulhador profissional.
Undine, claro, é uma versão do mito da ondina, o ser aquático que apenas adquire alma humana através do amor, e Petzold e Beer rodeiam-na de um mistério simultaneamente sedutor e inquietante (é ou não é um ser mitológico?), ou não estivesse ela disposta a matar o namorado que a trocou por outra. Essa dimensão vagamente sobrenatural remete-nos para os filmes mais fatalistas de Petzold, obras como Yella ou Jerichow, e cria a sensação de que Undine é um compasso de espera depois de três obras notáveis.
Mas quando percebemos que a própria desconstrução do mito da ondina está a ser feita em paralelo com a ideia da reconstrução de Berlim, cidade que se vai permanentemente desfazendo e refazendo de maneiras diferentes, começamos a perceber que estamos em território tipicamente Petzoldiano, sempre propondo-nos leituras que mergulham muito para lá da superfície.
Nem por acaso, a chave de Undine encontra-se dentro de água, e já lá estava há muito tempo. O passado, vai-se a ver, talvez não seja um país distante.