Deixem-nos viver e morrer com dignidade

Não é a eutanásia que mata velhinhos, mas a falta de dignidade, a falta de tempo, a falta de amor.

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Ensaio do espectáculo "Barbie in the House - Antonio Bastos e os Velhos", no âmbito do Festival Cabelos Brancos, dedicado aos seniores Adriano Miranda/Arquivo

É à hora do jantar que revemos os nossos dias. Aquele foi um dia digno de ser contado e começo entusiasmada: “Hoje entrevistei uma senhora que acompanhou a mãe até ao fim da vida…” Sou interrompida de imediato. “E isso é uma notícia desde quando? Não foi o que as avós fizeram?”

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É à hora do jantar que revemos os nossos dias. Aquele foi um dia digno de ser contado e começo entusiasmada: “Hoje entrevistei uma senhora que acompanhou a mãe até ao fim da vida…” Sou interrompida de imediato. “E isso é uma notícia desde quando? Não foi o que as avós fizeram?”

Sim. E, de repente, sinto-me irritada por — na minha conversa com aquela filha que deixou a família, o trabalho e a cidade onde vivia para estar com a mãe até à morte — ter insistido tantas vezes na situação de privilégio que ela tinha em relação à maior parte das pessoas. Porque a maioria dos adultos, a geração sanduíche entre os pais e os filhos dependentes, não pode suspender a sua vida para ficar a cuidar de uma mãe ou de um pai doente.

Mas, afinal é possível. Os meus pais trabalhavam e tinham a ajuda de uma empregada para que o meu avô permanecesse em casa até ao dia em que deu o último suspiro e eu fui ao centro de saúde pedir para o médico confirmar o óbito. Os meus sogros já estavam reformados e, por isso, entre os dois davam conta do recado.

De volta à mesa do jantar não desarmo e insisto em relatar o afecto e o amor de que Jacinta Oliveira fala quando recorda a mãe. Calo-me enquanto o resto da família discute o conceito de “notícia” e recordo aquele mês, há mais de uma década, em que o meu pai, um homem activo, esteve internado com uma pneumonia e eu não faltava a um único almoço na enfermaria. Sentada na redacção, comia qualquer coisa à secretária, frente ao computador, antes ou depois de correr até ao hospital. Aquela hora era importante para confirmar que o meu pai comia, saber como tinha passado a noite, fazer-lhe companhia, ouvir e dar recados e falar com o médico.

E sou interrompida nestes pensamentos com a insistência dos meus filhos: “Mas qual é a novidade? Isso não é uma notícia… Não é o que nós já fazemos?” Sim, nos últimos meses, com uma avó de canadianas, filhos e netos revezaram-se para não a deixarem só um único dia ou noite. “Tens sorte”, dizem-lhe as amigas. Ela encolhe os ombros, está convencida que não fazemos mais do que a nossa obrigação. Foi esse o exemplo que deu aos filhos.

Afinal, a sociedade não está assim tão perdida como fazem crer os argumentos daqueles que, nos últimos anos, têm pedido para não matar velhinhos. Não é a eutanásia que mata velhinhos, mas a falta de dignidade, a falta de tempo, a falta de amor. Aliás, a eutanásia não é para velhinhos, mas para pessoas como o pai de Ana Paula Figueiredo, com quem falei no mesmo dia, para quem a dor da doença era insuportável. Para pessoas conscientes da sua dor, da sua vida e da sua morte, que querem ter o direito a morrer com dignidade.

É a história daquele pai que amava a vida e que andou a “mendigar” a eutanásia, como conta a filha, que faz cair o silêncio sobre a nossa mesa de jantar. Esta quinta-feira, ao contrário das conversas de café, dos facebooks e das manifestações à porta do Parlamento, lá dentro, o debate foi elevado, com as óbvias excepções. O PSD deu uma verdadeira lição de democracia ao permitir liberdade de voto e ao deixar falar quem era a favor e quem era contra a eutanásia.

Com esta mudança, que ainda está demorada, a vida dos velhinhos não é beliscada. Agora, se queremos vida, é preciso apostar em mais direitos para os trabalhadores, para que possam ser cuidadores sem medos de perderem o emprego caso tenham de tirar dias para acompanhar os filhos ou os pais. É preciso apostar em mais e melhores cuidados de saúde, nomeadamente em cuidados paliativos, que têm de chegar a todo o lado; que todas as famílias precisam de saber que existem; que todos os profissionais de saúde os possam recomendar quando necessários. Em suma, é preciso apostar em mais qualidade de vida para que tenhamos direito a uma morte digna.