VPV: os encantos de uma prosa amarga
Foi sempre a nossa boa má consciência. Era lido, citado e reverenciado como nenhum outro colunista da imprensa portuguesa
É uma boa reflexão sobre nós próprios e sobre o país indagar sobre as causas que conservaram um colunista tão ácido, tão mordaz, tão crítico e tão pessimista como Vasco Pulido Valente no primeiro plano da actualidade ao longo de 40 anos ou mais. VPV, que nos deixou esta sexta-feira, era um velho herdeiro do conservadorismo previsível e aristocrático num tempo em que o mundo deixara de se devotar à ordem natural das coisas.
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É uma boa reflexão sobre nós próprios e sobre o país indagar sobre as causas que conservaram um colunista tão ácido, tão mordaz, tão crítico e tão pessimista como Vasco Pulido Valente no primeiro plano da actualidade ao longo de 40 anos ou mais. VPV, que nos deixou esta sexta-feira, era um velho herdeiro do conservadorismo previsível e aristocrático num tempo em que o mundo deixara de se devotar à ordem natural das coisas.
Foi cínico, cáustico e pessimista num Portugal que se deixou deslumbrar pelas obras faraónicas, o dinheiro fácil e um falso amparo eterno de Bruxelas. Desdenhava com muita frequência a capacidade do regime e dos “indígenas” para construir uma democracia mais robusta ou uma sociedade mais livre e distante do paternalismo do Estado.
Foi anti-cavaquista quando Cavaco estava no auge, anti-soarista depois de ajudar a eleger Soares para Belém e antitudo o que os portugueses elegeram com fartas ou menos fartas maiorias. Foi sempre a nossa boa má consciência. Era lido, citado e reverenciado como nenhum outro colunista da imprensa portuguesa.
Porquê? Concordemos num ponto prévio: na imprensa portuguesa, ninguém escrevia nem ninguém escreve tão bem como VPV. As suas frases curtas, incisivas e ritmadas valiam por si próprias, como que pudessem dispensar o seu significado. Escrever daquela forma luminosa, nas suas colunas ou nos seus ensaios historiográficos, garantia-lhe à partida um lugar distinto.
Havia depois a acrescentar à forma uma lucidez aguda que descobria questões de fundo onde a maioria via detalhes, uma imaginação fértil para a analogia (caso da “geringonça”), uma bagagem cultural prodigiosa e um pessimismo cínico que com facilidade alimentava a polémica sempre tão eficaz junto dos leitores de jornais. Parece fácil. Não é. Nos textos de VPV tudo era altamente complexo, sofisticado e brilhante.
Vasco Pulido Valente vai fazer-nos falta. Hoje, mais do que nunca, faz-nos falta quem nos convoque para a leitura de detalhes que nos escapam, ideias que não apreciamos, expressões que nos incomodam e visões do país e do mundo que estão longe das nossas. VPV conseguia-o sem recorrer ao ângulo fácil que apela à emoção. Conseguia-o porque tinha mundo, cultura, inteligência, talento, liberdade e coragem para dizer o que muitos não querem ouvir sem recear consequências.
Vasco Pulido Valente tinha todos esses dons, que, temperados pelo mau feitio, o levavam a ver a actualidade sem os adornos que o poder gosta de usar. Vamos ter saudades das irritações que nos causou, do prazer estético que as suas prosas nos concederam ou da verrina com que desembrulhou o país das últimas décadas para expor os seus defeitos.