O coração do barro alentejano bate no Corval
Em São Pedro do Corval encontra-se a maior concentração de olarias de Portugal e uma das maiores da Península Ibérica.
O ambiente que rodeia as peças em barro é frio, antigo e cheio de memórias. As paredes em cimento com alguns tijolos visíveis e as telhas do telhado a descoberto não deixam dúvidas sobre a quantidade de gerações que por ali já passaram. Na pequena aldeia de São Pedro do Corval, no concelho de Reguengos de Monsaraz, olarias é o que não falta. Contudo, apenas a Patalim se pode orgulhar de dizer que é a mais antiga.
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O ambiente que rodeia as peças em barro é frio, antigo e cheio de memórias. As paredes em cimento com alguns tijolos visíveis e as telhas do telhado a descoberto não deixam dúvidas sobre a quantidade de gerações que por ali já passaram. Na pequena aldeia de São Pedro do Corval, no concelho de Reguengos de Monsaraz, olarias é o que não falta. Contudo, apenas a Patalim se pode orgulhar de dizer que é a mais antiga.
A divergência de ideias criativas levou os irmãos Nélia e Rui, donos da Olaria Patalim, a optar por áreas de trabalho separadas, ainda que o negócio seja o mesmo. No interior, a meio do edifício quase centenário está um muro que, embora alto, permite espreitar para o lado de lá. Em ambas as partes encontram-se em exibição os artigos para venda, a estação da roda de oleiro e uma série de fotografias emolduradas na parede, que começam a preto e branco e terminam a cores.
Maria Antónia Conde é a primeira da fila na parte de Nélia num retrato típico de meados do século XX. Na família, há mais de 200 anos que existem oleiros, mas foi a bisavó dos actuais donos que, juntamente com o seu marido, em 1927, mandou construir o primeiro negócio. Era costume dizer aos empreiteiros da obra que “andavam a patalinhar”, que é como quem diz “trabalhar devagar”. Do “patalinhar” surgiu o “patalim” e assim ficou até aos dias de hoje, inscrito na entrada caiada de branco.
Entrar nesta olaria é voltar atrás no tempo, é entrar nas casas das avós e das tias-avós. É recordar as salas e as cozinhas decoradas com o que aqui se produz e vende. Pratos, copos, azeitoneiros, taças, jarros, tachos de todos os tamanhos. As cores vivas e variadas contrastam com a que predomina – o vermelho claro, seco e matizado do chão, do tecto, das paredes, dos aventais outrora brancos de quem mexe no barro conhecendo todos os truques para lhe dar a forma que quer.
Nélia e Rui nunca conheceram outro trabalho que não o da olaria. A irmã pinta e o irmão molda o barro na roda. É com orgulho que Nélia afirma que o irmão, com 42 anos, é o oleiro mais novo da região. Por outro lado, Rui confessa, enquanto dá forma a um jarro, com as mãos sem pele à vista, cobertas da matéria-prima que lhe dá a profissão, que quando era miúdo achava mais piada a este trabalho. Da família apenas um sobrinho com 26 anos mostra interesse em continuar a tradição, mas mesmo assim não está garantido que se dedicará de corpo inteiro ao negócio.
Uma arte milenar
Excursões de turistas, visitas de estudo e workshops são as formas de dar a conhecer o trabalho que aqui é feito. Especialmente as crianças ficam fascinadas com a roda e gostam de mexer no barro.
Estima-se que a cerâmica terá surgido há cerca de 10.000 anos, no período Neolítico, altura em que os humanos assentaram e passaram a subsistir da agricultura e da pastorícia. Foi o primeiro material produzido artificialmente pelo Homem.
Os vestígios arqueológicos do fabrico de cerâmica em Portugal remontam ao ano 6000 a.C. A região de Reguengos era e é fértil em barreiros – depósitos de argila -, o que levou à continuada produção de peças maioritariamente utilitárias ao longo dos séculos e milénios. Até ao ano 1000 a.C, a moldagem era feita totalmente à mão, época em que foi inventada a roda de oleiro que veio facilitar e agilizar o trabalho dos artesãos.
Em tempos mais próximos, o número de olarias na aldeia do Corval tem variado. Actualmente, estabilizou-se nas cerca de 25, número elevado para a quantidade de habitantes. Ainda assim, encontrar sangue novo para este trabalho não é tarefa fácil. Ao contrário do que se possa pensar, a profissão de oleiro leva entre quatro a cinco anos a aprender. Rui, que já deu formação a algumas pessoas, diz que a maior parte desiste passado pouco tempo, pois percebem que não se domina a arte em apenas alguns meses.
Se antigamente as peças feitas em barro tinham como principal função auxiliar nas tarefas domésticas e até industriais, nas últimas décadas são adquiridas para ornamentação de casas. Os padrões tradicionais e os tons azuis do início do século deram lugar a linhas e cores mais modernas – é o que mais vende na Patalim, que em 92 anos nunca deixou de funcionar.
O barro aqui amassado com uma máquina própria é adquirido em Leiria. Já não se justifica o trabalho que dá extraí-lo do solo. Chega do fornecedor em blocos pronto a utilizar, mas Rui gosta de lhe dar outra “passagem”. Desde que é posta na roda, ainda desfigurada, até que sai do forno pronta a ser vendida, cada peça leva aproximadamente uma semana a ser feita. Não há duas iguais.
Aqui trabalha-se sete dias por semana, 10 horas por dia, para manter a produção a par. A maior parte do que aqui se faz vai para além-fronteiras – Estados Unidos da América, Dubai, Nova Zelândia, Holanda, Irlanda. O barro com o carimbo Patalim percorre o mundo e no que depender dos irmãos Nélia e Rui assim continuará a ser por muitos mais anos.
Texto editado por Ana Fernandes