Aeroplano II
Não há economia nem empregos no colapso climático e a nossa prioridade é salvar as condições que permitam um futuro. Não vamos ficar a rir-nos enquanto constroem a nossa tragédia colectiva.
O plano do novo aeroporto do Montijo não arrancou e já é uma comédia em chamas: avaliações de impacto ambiental ridículas (ainda alguém acredita nelas?), imposição ao poder local, riscos graves de inundação, processos em tribunal, pássaros estúpidos, leis marteladas para aprovar um projecto catastrófico. Seria difícil planear um projecto para angariar tanta antipatia, um tal compêndio de suspeição, hipocrisia, incoerência, incompetência e autoritarismo. É um projecto morto à nascença, mas tanto não pode haver aeroporto no Montijo como não pode haver aeroporto em Alverca, em Alcochete ou onde quer que seja. Vivemos numa emergência climática, novos projectos que aumentam dramaticamente as emissões só podem ter um destino: ser parados. E serão.
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O plano do novo aeroporto do Montijo não arrancou e já é uma comédia em chamas: avaliações de impacto ambiental ridículas (ainda alguém acredita nelas?), imposição ao poder local, riscos graves de inundação, processos em tribunal, pássaros estúpidos, leis marteladas para aprovar um projecto catastrófico. Seria difícil planear um projecto para angariar tanta antipatia, um tal compêndio de suspeição, hipocrisia, incoerência, incompetência e autoritarismo. É um projecto morto à nascença, mas tanto não pode haver aeroporto no Montijo como não pode haver aeroporto em Alverca, em Alcochete ou onde quer que seja. Vivemos numa emergência climática, novos projectos que aumentam dramaticamente as emissões só podem ter um destino: ser parados. E serão.
A última justificação para a “imprescindibilidade” de um novo aeroporto no Montijo é que se perdem 400 mil passageiros por ano, segundo o ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos. Considerando que em 2018 o Aeroporto da Portela recebeu mais de 30 milhões de passageiros, fica por perceber qual é mesmo o argumento. Dizem que há 40 anos que deveria ter sido construído um aeroporto em Lisboa. Acrescentam que se anda há décadas a brincar aos aeroportos – noutra altura andava-se a tentar construir um Estado Social e um país decente, depois a resgatar o festim das privatizações e da crise dos bancos e, portanto, não é de estranhar que tal projecto não tenha sido, e bem, prioritário. O actual governo pretende montar a derradeira “brincadeira” que é propor uma expansão aeroportuária que passe dos 30 milhões de passageiros por ano para os 60 milhões de passageiros por ano.
Como há 40 anos devia ter sido construído um aeroporto, e há 30 também, como há 20 ou há dez teoricamente também, nada do que tenha acontecido entretanto justificaria cancelar isto, segundo a elite económica, os argumentistas. O facto de termos de fazer um corte radical das emissões de gases com efeito de estufa é considerado facultativo, o que justifica a possibilidade de passarmos de 4,5 a 4,6 milhões de toneladas de dióxido de carbono emitidas em 2019 pelo Aeroporto de Lisboa para as nove milhões de toneladas que uma duplicação dos passageiros implicaria (além das emissões subvalorizadas feitas na troposfera pelos aviões).
O ministro do Ambiente, parece, já garantiu que os voos do futuro far-se-ão por passarola, tecnologia sem emissões e em acelerado desenvolvimento, e António Costa disse no lançamento da Capital Verde que “o novo aeroporto vai produzir dois milhões de toneladas por ano” em 2050. Fora do campo da imaginação à la Júlio Verne destes governantes, tal nível de emissões só é possível se o Montijo já estiver debaixo de água nessa altura.
O cumprimento integral das metas das políticas públicas climáticas portuguesas (tanto o Roteiro para a Neutralidade de Carbono 2050 como o Plano Nacional de Energia e Clima) não é suficiente para manter o aumento da temperatura até 2100 abaixo dos 1,5ºC. Projectos como o do aeroporto (e outros) foram convenientemente deixados de fora destas contas e agravariam ainda mais o buraco entre aquilo que teoricamente será feito e aquilo que é imprescindível cortar em emissões. Contabilidade criativa pode servir para arremesso político na dívida pública e no défice, mas não serve para a química atmosférica, que não tem sentido de humor.
Não nos devemos deter apenas em política futura e na exclusão dos impactos climáticos de qualquer avaliação de um novo aeroporto. Actualmente, Portugal apoia activamente a indústria aeroportuária e a sua expansão, com incentivos financeiros, monetários e fiscais. Impostos sobre emissões de bilhetes? Em Portugal são zero (no Reino Unido são 43€, em Itália 19€, na Alemanha 13€ e em França 9€). O IVA para os vossos domésticos é de 6% e para os voos internacionais é de 0%. Toda a Europa “verde” isenta de impostos os combustíveis dos aviões. Taxa de ruído? Também zero. Um verdadeiro offshore para a aviação numa paródia nacional em que se diz que há prioridade para a ferrovia.
Depois de ter percebido que a Autoridade Nacional da Aviação Civil vai chumbar o Aeroporto do Montijo, o governo anunciou que vai inventar uma nova lei para permitir a construção na mesma. Disse ainda que os pássaros não são estúpidos e “é provável que se adaptem” a um novo aeroporto. Tantas aberrações parecem de propósito e talvez indiquem que o Governo já está, de facto, a desistir do projecto. Só falta aparecer o Leslie Nielsen numa conferência de imprensa a falar das vantagens das pistas subaquáticas para a Saúde para termos a certeza de que esta é a sequela da comédia Aeroplano.
Há que deixar uma mensagem claríssima, quer esta tragicomédia avance mais um pouco ou não: não haverá novo aeroporto no Montijo ou em qualquer outro sítio. O business as usual morreu e as ladainhas requentadas do desenvolvimento e riqueza associados ao capitalismo fóssil não servem o futuro de ninguém. Não há economia nem empregos no colapso climático e a nossa prioridade é salvar as condições que permitam um futuro. Não vamos ficar a rir-nos enquanto constroem a nossa tragédia colectiva.