Morte provocada, uma lei “aqui vai disto”
O que está em curso é a tentativa de um assalto legislativo. Nada a ver com 2018. Este assalto só servirá para manchar também o processo da legislatura anterior. Todos entenderão, se o assalto for por diante e se consumar, que o processo da legislatura anterior era apenas uma mascarada, uma via de sentido único: se não vai a bem, vai a mal. É o que ficará do processo legislativo “aqui vai disto”. A prepotência.
1. Ouve-se contra o referendo sobre a eutanásia que os direitos fundamentais não são referendáveis. Disse-o a líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes: “uma matéria de direitos fundamentais, como a liberdade de cada um, não é susceptível de referendo”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. Ouve-se contra o referendo sobre a eutanásia que os direitos fundamentais não são referendáveis. Disse-o a líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes: “uma matéria de direitos fundamentais, como a liberdade de cada um, não é susceptível de referendo”.
Este argumento, muito popular nas bancadas da morte a pedido, não tem ponta por onde se lhe pegue. Não passa de expediente anti-democrático para impedir, a todo o custo, que as pessoas se pronunciem sobre o que directamente lhes diz respeito.
Alguma norma constitucional que fixe este tabu? Não há. Seria uma Constituição de tirania, se o fizesse. Alguma norma na lei do referendo que estabeleça a proibição? Não há. Seria uma lei da rolha, e não uma lei de liberdade, se a fixasse.
A experiência internacional mostra, aliás, o contrário. Já houve centenas de referendos no mundo sobre temas de direitos fundamentais. Na Suíça, onde os referendos são frequentes, já os houve e tornará a haver. Nos Estados Unidos da América, onde se aproveitam as eleições (presidenciais, para o Congresso ou para governadores) para, ao mesmo tempo, realizar diversas consultas referendárias estaduais, já houve centenas de referendos em matérias de direitos fundamentais. Quando da Constituição Europeia, houve referendos nos Estados-membros – e o projecto tinha matéria desse tipo, incluindo disposições quanto à Carta dos Direitos Fundamentais. O mesmo com o Tratado de Lisboa, na Irlanda, onde o referendo europeu é sempre obrigatório. O referendo é um instrumento democrático. Ponto.
Ao Partido Socialista, em especial, fica muitíssimo mal impedir o referendo, quando já impediu que as eleições se pronunciassem sobre a questão, ao subtrair o tema do programa eleitoral e escondê-lo no sótão. É uma mancha negra, muito escura, no seu palmarés político, difícil de remover e apagar. O PS tem a obrigação política de se chegar à frente e aprovar o referendo.
2. A deputada Isabel Moreira é grande pregadora da falsa teoria de proibição de referendos. Frequentemente parece esquecer-se do curso onde foi bem classificada. Recorre ao Direito (melhor, à sua aparência), não como busca de justiça, mas pura ferramenta de poder – o que é a mais perigosa deriva nos que manejam o Direito e as leis. É a arbitrariedade: “Se posso, está bem.”
Esgrime com desembaraço a desonestidade intelectual. Ouvi-a garantir: “É só isto. Nada de rampa deslizante.” Como pode garantir uma coisa destas? Como pode ignorar a experiência dos outros países? Como pode esconder intenções futuras depois da primeira porta aberta, tal como esconderam o programa eleitoral aos eleitores de Outubro de 2019?
Ouvi-a acrescentar, referindo-se aos defensores do referendo: “Querem tirar a matéria do Parlamento, que é o espaço nobre.” Desde logo, o povo – que é o titular da soberania, não o Parlamento – é tão, ou mais, nobre que a Assembleia da República. E a deputada sabe que a afirmação é uma falsidade: se o referendo autorizasse a legalização da eutanásia, a Assembleia terá sempre de intervir. O referendo não legisla; só o Parlamento legisla.
3. A afirmação mais chocante da deputada Isabel Moreira foi esta, na TVI24: “O direito à vida não é um direito absoluto.” Absoluta falta de pudor. Um verdadeiro escândalo numa deputada do nosso tempo. Uma afirmação que seria a contra-revolução.
Como não é o direito à vida um direito absoluto? Num país cuja Constituição dispõe assim: “A vida humana é inviolável” – como pode atropelar-se esta garantia? O carácter absoluto do direito à vida não resulta só da formulação particularmente vigorosa e peremptória da Constituição – com uma beleza tão simples que deve ser objecto do nosso justificado orgulho internacional na comunidade das Nações. Resulta também da sua própria natureza: a vida é o primeiro de todos os bens jurídicos da pessoa e o seu direito o primeiro dos direitos fundamentais. É o único a que, em caso de colisão, é impossível aplicar a proporcionalidade: ninguém está 60% vivo, ou 45%, ou 90% – ou estamos vivos, ou estamos mortos. O direito à vida só pode ser protegido na sua integralidade, não pode ser fatiado, não sobrevive em parcelas. É o único direito fundamental absoluto por sua própria natureza.
O que a deputada Isabel Moreira afirmou, por aquela tirada fortemente condenável, seria uma revisão constitucional pela subcave, violando os próprios limites materiais de revisão: a contra-revolução constitucional por via interpretativa, em palavras postas a dizer o contrário do seu valor facial e frases a significar o contrário do que qualquer leitor entende. Uma rampa deslizante, na verdade, não só na eutanásia, mas em toda a ordem democrática. Quando formos por aí, podemos dizer adeus ao “Portugal [que] é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” – como proclama o art. 1.° da Constituição. Passará a obedecer aos caprichos da deputada Isabel Moreira e similares.
4. Isabel Moreira teve razão ao recordar: “Houve muito debate até 2018.” É verdade. Precisamente, não é nada disso que se passa agora. Agora, estamos perante a tentativa de uma decisão à queima-roupa. Na legislatura anterior, os projectos foram apresentados com larga antecedência relativamente à subida a plenário e sua votação. Agora, têm poucas semanas. Na legislatura anterior, foram feitas várias audições e pedidos (e recebidos) vários pareceres. Agora, pareceres fundamentais não serão recebidos a tempo ou serão feitos à pressão. Na legislatura anterior, foram apresentadas e ponderadas petições em sentidos diferentes. Agora, nem uma. Na legislatura anterior, houve debate social pelo país. Agora, zero – e pretende abortar-se o referendo, em vez de o apoiar.
O debate desta legislatura não é a continuação do da legislatura anterior. Esse processo acabou com o chumbo dos projectos no plenário. Agora, é nova abordagem, em que cabe começar por explicar, na substância da matéria, não na superficialidade da relação de forças, o que é que mudou para, agora, poder vir a ser “Sim” o que, há não menos de dois anos, foi “Não”. Importa voltar seriamente à casa da partida. Não é legítimo inventar um prolongamento para virar o resultado num instantinho. Qualquer pessoa entende que é batota, uma golpada.
O que está em curso é a tentativa de um assalto legislativo. Nada a ver com 2018. Este assalto só servirá para manchar também o processo da legislatura anterior. Todos entenderão, se o assalto for por diante e se consumar, que o processo da legislatura anterior era apenas uma mascarada, uma via de sentido único: se não vai a bem, vai a mal. É o que ficará do processo legislativo “aqui vai disto”. A prepotência.