Nem só mas também
Já escrevi neste jornal um pequeno texto Em defesa dos cuidados paliativos, mas julgo oportuno voltar ao tema com uma nova reflexão seguida de umas propostas concretas.
O grande Augusto Abelaira, quando padecia de doença fatal, teve a sorte e a arte de concluir e rever o seu livro – Nem só mas também (Editorial Presença, 2004) – que foi publicado postumamente, culminando uma obra cheia de saborosas ironias e diálogos interiores.
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O grande Augusto Abelaira, quando padecia de doença fatal, teve a sorte e a arte de concluir e rever o seu livro – Nem só mas também (Editorial Presença, 2004) – que foi publicado postumamente, culminando uma obra cheia de saborosas ironias e diálogos interiores.
Ignoro os motivos por que o escritor escolheu estas conjunções copulativas para título do seu livro mas elas saltam-me à consciência muitas vezes quando ouço debates sobre a despenalização da ajuda médica à antecipação da morte iminente e inevitável, associando-a com conjunções disjuntivas ou alternativas à necessidade prévia de uma ampla rede de cuidados paliativos.
Já escrevi neste jornal um pequeno texto Em defesa dos cuidados paliativos (PÚBLICO, 06.04.2016), mas julgo oportuno voltar ao tema com uma nova reflexão seguida de umas propostas concretas.
Ouve-se frequentemente afirmar que, em certas situações de sofrimento no estado terminal de uma doença, o doente deve passar a ser seguido numa unidade de cuidados paliativos e que se torna urgente alargar e tornar efetiva essa rede. Diz-se mesmo que só depois se poderá admitir o falhanço desses cuidados. Creio, contudo, que o erro deste raciocínio está em se estabelecer uma sequência temporal aos cuidados. Não, as medidas de alívio da dor e do sofrimento têm de começar ao mesmo tempo que estes surgem e não só quando falham os cuidados curativos. Não, não é só em serviços especializados em cuidados terminais que tais medidas se aplicam – mas também nas casas dos doentes e nos serviços hospitalares de todas as patologias.
Assim, importa que fique expressamente contemplado em diploma legal ou regulamento profissional que é dever dos profissionais de saúde, especialmente dos médicos, prestarem e providenciarem a prestação precoce de cuidados lenitivos sempre que houver diagnóstico de doença incurável. Esta prática vai no sentido de se agir antes de os sintomas intoleráveis se instalarem.
De notar que optei pelo adjetivo “lenitivo” pois acredito que haverá vantagem em se evitar o adjetivo “paliativo” por ter uma carga semântica ambígua e discriminatória. Está, aparentemente, entranhada a noção equívoca de que só se usam paliativos quando não há mais nada a oferecer.
Na proposta de legislação que se anuncia vir a ser recuperada brevemente para votação parlamentar está prevista uma Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação de Morte a pedido do doente. Tendo em vista a importância de tal órgão, a bem da sua eficácia, atrevo-me a propor que, além dos membros indigitados pelos dois conselhos superiores das magistraturas e pelas duas ordens profissionais, o quinto elemento seja o seu presidente, escolhendo-se uma personalidade de reconhecido mérito aprovada por maioria na Assembleia da República. Haveria toda a vantagem em que a todos os seus membros fosse reconhecida, na lei, independência face às entidades indigitantes e inamovibilidade (salvo motivo de força maior). Parece igualmente pacífico que a comissão só deveria iniciar funções depois de audição pública de cada um dos seus elementos na Comissão de Saúde da Assembleia da República, finda a qual poderia ou não ser votada a não-conformidade do indigitado para as funções.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico