A insustentável leveza da crítica às políticas culturais municipais
Ao contrário de Rui Matoso, que usa três ou quatro maus exemplos para justificar todas as malfeitorias do “municipalismo cultural”, a minha tese é que são exatamente esses casos pontuais, que acontecerão sempre, a provar a normalidade e o bom desempenho global das políticas culturais municipais.
A propósito do artigo de Rui Matoso publicado no PÚBLICO no dia 22 de outubro, intitulado “A insustentável leveza do municipalismo cultural”, a Acesso Cultura lança hoje, em simultâneo em várias cidades do país, o debate com o mote “Municipalização da cultura?”.
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A propósito do artigo de Rui Matoso publicado no PÚBLICO no dia 22 de outubro, intitulado “A insustentável leveza do municipalismo cultural”, a Acesso Cultura lança hoje, em simultâneo em várias cidades do país, o debate com o mote “Municipalização da cultura?”.
O tema é pertinente e justifica bem toda discussão que possamos fazer, ainda que o texto que a motiva nos apresente uma análise das políticas culturais municipais desligada do contexto em que são promovidas, generalizando ideias preconcebidas e que não traduzem a realidade do trabalho e o papel atual dos municípios na área da cultura.
No fundo, é a tradicional hipercrítica sempre do lado das políticas locais, quando comparada com a indiferença pública vetada à quase inexistência de políticas culturais do Estado em grande parte do território português. E essa bem podia ser a primeira das questões em torno da desigual acessibilidade à cultura, à democratização das diversas expressões artísticas, ao conhecimento ou à fruição do património.
Centremo-nos nos factos: temos uma política cultural do Estado absolutamente concentrada nos dois grandes centros urbanos do país, com extensões pontuais a algumas cidades médias. Há muitos municípios de Portugal que não recebem qualquer investimento ao longo de toda a execução do orçamento anual do Ministério da Cultura, o que é, desde logo, um fator de crescente diferenciação entre cidadãos, contrária à Constituição e sintomática do atraso estrutural do país.
Hoje, os municípios portugueses investem em cultura, por ano, tanto como o ministério, cerca de 500 milhões de euros (Orçamento do Estado e INE) e, na mesma linha de generalizações de Rui Matoso, permito-me afirmar que, no que respeita a assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de ação cultural (art. 78.º da CRP), este investimento será estruturalmente bem mais eficiente do que o da administração central.
Mas para o autor o grande problema de constitucionalidade nesta área prende-se, também, com a garantia do pluralismo e da liberdade cultural que, segundo a sua tese, os municípios estarão a cercear. Aqui, são de salientar algumas ideias feitas e preconceitos em relação à administração local que convém desconstruir. Segundo a sua tese, o plano dos autarcas é de utilização da cultura para entorpecimento global dos seus munícipes, visando, não só a reeleição imediata, mas ainda outros objetivos meio obscuros, associados a um conjunto de ameaças do mundo contemporâneo não integralmente explanadas.
Por um lado, é óbvia a desconsideração da existência atual de todo um corpo técnico municipal que investiga, propõe, fundamenta, executa e avalia, uma programação diversificada e abrangente, nas mais diversas áreas da cultura, da música e do teatro, da conservação do património, da edição, das expressões artísticas emergentes ou da promoção da leitura, entre outras. É verdade que o fazem em equipas pequenas, por vezes demasiado multifuncionais, mas com conhecimentos e experiências semelhantes aos das grandes estruturas culturais, algo que algumas franjas de um certo elitismo resistente tende a desprezar.
Por outro lado, convém não perder de vista a primeira finalidade da administração local: no caso de um município, satisfazer os interesses próprios da sua população. O que quererá dizer que a programação cultural deve ser pensada numa lógica de serviço público para todos os munícipes, chegando às mais diversas sensibilidades e interesses, através de critérios de qualidade, inovação e diversidade, mas também de razoabilidade e sustentabilidade dos próprios equipamentos e investimentos.
Ao contrário de uma estrutura como um teatro ou museu nacional, com uma finalidade específica (e um escrutínio difuso), um autarca responsável por um teatro municipal, uma biblioteca, galeria ou museu municipal vê a gestão dos recursos que disponibiliza à comunidade avaliada de forma muito direta, rápida e publicamente. Mais: numa sociedade como a atual, sempre ligada, em permanente contacto e com uma mobilidade sem precedentes, as necessidades de consumo cultural são transversais no país. Quem se arrisca a reduzir as opções ao tal “ideal estético kitsch” de que fala Matoso? Não será esta assunção ela própria ferida de um paternalismo sem sentido?
Por fim, é de assinalar o total desligamento do autor do contexto em que são desenvolvidas hoje as políticas culturais locais. Temos aqui uma concordância óbvia. Tal como Rui Matoso, também registo que há, efetivamente, um excessivo protagonismo municipal na vitalidade cultural dos territórios. Mas é preciso não conhecer o que se passa num Portugal fora dos grandes centros urbanos para não perceber que este protagonismo decorre da falta de massa critica dos tecidos sociais de grande parte dos municípios, sujeitos, há décadas, a um processo de abandono, desinvestimento e despovoamento que tínhamos obrigação de conseguir contrariar.
Ainda assim, os municípios apoiam as estruturas que resistem à ausência de apoios do Estado (veja-se o exíguo mapa do destino dos apoios da DGArtes, por exemplo), associam-se a iniciativas que ainda vão surgindo de alguns movimentos locais ou regionais e sim, programam atividades culturais, quando entendem que estas podem ser benéficas para munícipes e território. É essa a sua função. “Furor histórico fascista de criação de uma cultura oficial”! “Municipalismo monstruoso”! “Colonialismo cultural”! Há aqui um despropósito difícil de entender.
Quer isto dizer que todas as políticas prosseguidas pelos municípios são boas, isentas e bem-intencionadas? Longe disso. Mas ao contrário de Rui Matoso, que usa três ou quatro maus exemplos para justificar todas as malfeitorias do “municipalismo cultural”, alguns sem os pormenores que permitiriam uma avaliação isenta, a minha tese é que são exatamente esses casos pontuais, que acontecerão sempre, a provar a normalidade e o bom desempenho global das políticas culturais municipais.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico