Um arquivo é uma referência
Todos os arquivos importam. Uns fundos serão preciosos, mas todos são importantes, não há documentos de segunda. Só os historiadores estarão, um dia, à altura de dizer quanto importam e mesmo essa opinião nunca é definitiva. Parafraseio Eco, e embora por razões diferentes da biblioteca, o arquivo também se converte numa aventura.
No rasto do Arquivo Municipal de Lisboa, vamos deixar para trás o problema das inundações nos depósitos; a questão dos bolores persistentes; o perigo da segurança demasiado frágil; das instalações indignas; a observação das canalizações aéreas de águas limpas e de esgotos; a descrição penosa das soluções domésticas entre metros de plástico e baldes. Fernando Medina deve estar cansado destas queixas, tantas foram que talvez até pense estarem resolvidas, mas, quiçá, não terá ainda escutado o pulsar do arquivo a partir dos próprios documentos, a alma do arquivo. Porque merecerá um arquivo a nossa atenção?
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No rasto do Arquivo Municipal de Lisboa, vamos deixar para trás o problema das inundações nos depósitos; a questão dos bolores persistentes; o perigo da segurança demasiado frágil; das instalações indignas; a observação das canalizações aéreas de águas limpas e de esgotos; a descrição penosa das soluções domésticas entre metros de plástico e baldes. Fernando Medina deve estar cansado destas queixas, tantas foram que talvez até pense estarem resolvidas, mas, quiçá, não terá ainda escutado o pulsar do arquivo a partir dos próprios documentos, a alma do arquivo. Porque merecerá um arquivo a nossa atenção?
Os arquivos, como as bibliotecas, materializam a memória colectiva. Fazem-no cada instituição à sua maneira e os motivos porque os fundos de arquivo ou as colecções de biblioteca foram reunidos são distintos, as diferenças são enormes. A tónica para os arquivos consiste na recolha dos documentos que sustentam o poder enquanto nas bibliotecas a construção não assume essa responsabilidade. Pela própria natureza das coisas, a massa documental guardada nos arquivos é apenas uma parte da produzida. Grande responsabilidade a nossa, seus guardiães. Cada documento faz a ponte entre o passado e o futuro, a nossa participação hoje, embora absolutamente transitória, não é despicienda.
Conhecendo cada momento, esta fragilidade, talvez não seja conveniente entregar cada documento à sua sorte, contribuindo para a sua destruição. Escrevi em tempos e reproduzo: “o documento constitui uma prova palpável do que já não existe, do intangível. Esta memória do passado contribuiu desde sempre para justificar a criação dos arquivos e a sua protecção… os arquivos foram olhados e organizados como um instrumento para o exercício do poder político”. Em cada arquivo, os testemunhos (i.e. documentos) aí reunidos também são os elementos aptos a corporizar a memória colectiva.
Muito do trabalho do historiador e “do seu gosto pelo arquivo passa pelo gesto artesanal, lento e pouco rentável, de copiar os textos, bocado após bocado, sem transformar nem a forma, nem a ortografia, nem mesmo a pontuação. Sem grandes pensamentos, como se a mão, ao fazer este trabalho, permitisse ao espírito ser simultaneamente cúmplice e estranho ao tempo destes homens e mulheres que se vão revelando”. Traduzi livremente Farge – Le goût de l’archive – e podia continuar. Palavras poderosas que nos transportam ao cerne da questão. Dispor ou não dos documentos, preservá-los, dar esta indizível oportunidade a quem quer escrever a história. Os documentos são insubstituíveis, não se podem perder, não podem estar à mercê de oscilações térmicas, de águas limpas e sujas que podem irromper a cada instante.
Digitalizar a eito os documentos não resolve o problema. A digitalização como solução tecnológica é, certamente, um instrumento poderoso. Não negarei as suas vantagens. Este reconhecimento não faz de mim uma convertida. Pugnar de forma autista pelas soluções tecnológicas que afastam indesmentivelmente as pessoas das suas origens é negar (eliminar e mutilar) um lado humanista do trabalho da história, objectivo e rigoroso que não pode esquecer o lado humano e social da investigação histórica. Isto não é um exagero. Manusear os documentos, sentir tanto quanto possível como e quando foram preparados – seja um rol, um testamento, uma nota de viagem, uma lei ou uma sentença – é estabelecer uma ligação ao documento primeiro, depois ao tempo, a uma casa ou a uma personalidade. De repente, o documento torna-se numa verdadeira máquina do tempo e com ela recuamos para a época.
Não, com o digital não acontece o mesmo, está tudo higienizado, não há tacto nem cheiro. Tudo limpo, pronto a ser medido, contado, calculado. Grande ferramenta sem alma, o investigador fica longe e despido de qualquer sentimento. Não impondo uma fórmula fundamentalista, talvez possamos recorrer ao documento original e à sua cópia digitalizada retirando duma e doutra contribuições complementares.
Todos os arquivos importam. Uns fundos serão preciosos, mas todos são importantes, não há documentos de segunda. Só os historiadores estarão, um dia, à altura de dizer quanto importam e mesmo essa opinião nunca é definitiva. Mudam os intérpretes, mudam os contextos, mudam as perguntas. Só os documentos permanecem, mudos e (im)pacientes por mais uma análise ou um interrogatório. Parafraseio Eco, e embora por razões diferentes da biblioteca, o arquivo também se converte numa aventura.