Eutanásia: anatomia dos projectos de lei
Proponho-me desfazer alguns mitos que resultam de desconhecimento ou de vontade deliberada de intoxicar a opinião pública num e noutro sentido.
O actual debate em torno da eutanásia não trata de uma qualquer despenalização, mas de uma verdadeira descriminalização.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O actual debate em torno da eutanásia não trata de uma qualquer despenalização, mas de uma verdadeira descriminalização.
A primeira diz respeito a uma diminuição das molduras penais abstractas com que se pune um certo comportamento humano qualificado pela Lei como delito e a descriminalização, como o nome indica, trata de retirar certa conduta do catálogo punitivo, podendo ser pura (a conduta passa a ser lícita) ou especial (mantém-se o cariz ilícito da conduta, mas já se não justifica a censura penal, mas contra-ordenacional, p. ex.).
É o que se discute agora, ao tornar não punível os crimes de homicídio, homicídio a pedido da vítima, ajuda ou incitamento ao suicídio ou sua propaganda, desde que se trate de uma decisão consciente de um paciente em estado terminal, com doença incurável e que lhe provoca um sofrimento atroz.
Já no referendo sobre o aborto se tinha usado esta artimanha para adocicar o que se perguntou aos eleitores: também aí se não tratava de despenalizar, mas de descriminalizar o aborto em certas circunstâncias. Cientes do peso das palavras – e certamente não por falta de conhecimento técnico-jurídico –, mesmo o Tribunal Constitucional deixou passar uma pergunta inexacta do prisma do Direito.
Continuando a tentar esclarecer esta complexíssima questão, como já o fiz em outro artigo aqui no PÚBLICO, apenas de um prisma jurídico, proponho-me analisar a traço grosso os projectos de lei dos cinco partidos que serão discutidas na generalidade no dia 20 e, em meu juízo, desfazer alguns mitos que resultam de desconhecimento ou de vontade deliberada de intoxicar a opinião pública num e noutro sentido.
Assim, o grau de exigência para a ajuda à morte é elevado. “Lesão definitiva ou doença incurável e fatal, estando [o paciente] em sofrimento duradouro e insuportável” (IL), “situação de profundo sofrimento decorrente de doença grave, incurável e sem expectável esperança de melhoria clínica, encontrando-se em estado terminal ou com lesões amplamente incapacitante e definitiva” (PEV), “lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável” (BE), “doença ou lesão incurável, causadora de sofrimento físico ou psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente ou nos casos de situação clínica de incapacidade ou dependência absoluta ou definitiva” (PAN) ou “antecipação da morte por decisão da própria pessoa em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal” (PS). O único projecto que alude directamente à doença mental é o do PAN, pensando eu que esta forma de sofrimento deve ser eliminada, até para se não dar o caso de se usar este padecimento como forma de invocar uma suposta doença incurável que não existe, sabendo-se que a doença mental, muitas vezes, não tem reflexos físicos.
Exige-se sempre que o consentimento seja livre, sério e esclarecido, pelo que só abrange maiores de idade e pessoas que estejam em condições de entender e querer o acto, o que afasta todos os que se encontrem em estado de inconsciência, sendo que o consentimento é revogável a todo o tempo.
Existem vários momentos de manifestação, que tem de ser documentada por escrito, de modo a que a actualidade da vontade seja garantida até ao momento final: 5 no projecto do PS ou 3 no do PEV, p. ex. É sempre exigido parecer médico que, se considerar que os requisitos legais não estão preenchidos, impede a eutanásia, para além de um outro de médico especialista, se a patologia o exigir, o que será o mais comum, a que acresce, havendo dúvidas sobre a existência de doença desse foro ou da total clareza do consentimento, de um psiquiatra, que é igualmente impeditivo, se negativo, da ajuda à morte.
Todos os projectos criam uma comissão, de composição variável entre eles, que tem ainda a última palavra. Se há projectos de lei, como o da IL, que admitem a administração do fármaco letal pelo médico ou pelo doente, sob supervisão médica, em estabelecimentos de saúde privados ou do sector social, entendo que se devia reservar apenas esse acto para o sector público, para que não restem dúvidas sobre qualquer tipo de enviesamento em função da legítima intenção do lucro. Aliás, já alguns grupos privados anunciaram que não praticarão a eutanásia. O que me leva a outra questão: é obrigatória, por determinação constitucional, a garantia da objecção de consciência, o que torna violador da CRP os projectos do PS, BE e do PAN quando exigem que o clínico fundamente as razões de tal objecção (neste ponto, a iniciativa do IL é a mais bem conseguida).
A referida comissão conta com a presença de juristas, para além de médicos e enfermeiros, devendo, em meu parecer, os profissionais de saúde estar em maioria e devendo este ente administrativo autónomo funcionar na dependência do Parlamento. É avisada a concepção da IL, PAN ou BE de que deva ter assento na comissão um especialista em ética ou bioética nomeado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
Penso, por fim, que é adequada a possibilidade de o acto de administrar a morte seja praticado em estabelecimento de saúde ou no domicílio do paciente (e não em qualquer outro lugar, como prevê, p. ex., o BE), desde que o mesmo reúna condições médicas para o efeito, como proposto pelo PS.