Paulo nadou para salvar os filhos e a sogra. Moçambicanos voltam a enfrentar cheias
Milhares de pessoas enfrentaram uma corrente que resultou de chuvas fortes e que inundou bairros e campos agrícolas nas zonas baixas, provocando uma nova vaga de deslocados em Moçambique.
Quase um ano depois de ter sobrevivido ao choque severo do ciclone Idai, Paulo José volta a passar por momentos de angústia com a inundação da sua aldeia em Muda-Mufo, no centro de Moçambique.
O camponês de 34 anos sobreviveu desta vez agarrado à viga de uma pequena ponte, a poucos passos de casa, travessia onde decidiu refugiar-se com a família quando a água voltou a “arrastar tudo” — tudo o que pode haver numa aldeia pobre, com casas de caniço e barro, agora diluído.
“Estávamos dentro de casa quando ouvimos o ruído da água. Corremos para a estrada”, conta Paulo José, que nessa noite teve de nadar várias vezes contra a corrente das águas para ir buscar os filhos e a sogra. Lamenta já não ter conseguido deitar mão às suas galinhas e aos patos.
Desde quarta-feira à noite sobrevivem na estrada, no distrito de Nhamatanda, província de Sofala. “Estamos em cima desta ponteca”, diz o camponês, que improvisou naquele pedaço de betão um novo abrigo, com uma lona doada pela ajuda de emergência após o ciclone Idai, em Março de 2019.
Águas subiram durante a noite
Como Paulo José e a família, milhares de pessoas enfrentaram desde quarta-feira uma corrente que resultou de chuvas fortes e que inundou numerosos bairros e campos agrícolas nas zonas baixas de Lamego e Tica (Nhamatanda), provocando uma nova vaga de deslocados e afectando áreas onde estão realojadas as vítimas do ciclone Idai.
Após galgar os leitos dos rios, as águas atingiram várias aldeias durante a noite, surpreendendo moradores a dormir, que fugiram, deixando para trás tudo o que tinham recuperado nos 11 meses após aquela que foi uma das piores tempestades de sempre em Moçambique.
Seguindo de barco, no meio das zonas inundadas, encontra-se Jonasse Manuel e a família, sentados na cobertura da sua casa, ainda rodeada de água, mas onde já é possível entrar. Há três dias estava quase toda submersa — só a cobertura escapou, quando a subida dos níveis foi repentina.
Jonasse foi surpreendido quando tentava arrumar a trouxa e deixar a habitação, na quarta-feira, meia hora depois de ter recebido a informação de que uma corrente descia em direcção à aldeia.
“Aquilo foi terrível”, descreve o pescador de 28 anos, que, depois de ver as estradas bloqueadas, subiu rapidamente para o cimo da casa, uma estrutura frágil de estacas e capim, onde rezou por várias horas para ninguém ser arrastado.
Hoje ainda espera que o solo seque, numa altura em que pouco falta para ficar sem água potável e comida. “Toda a alimentação foi embora. Roupa, comida, pratos, todos os utensílios domésticos foram embora”, diz Manuel Jonasse, que há quase um ano escapou ao ciclone Idai por ter saído daquela zona com antecedência.
Já Ernesto Nhanombe, um morador de Macumba 1, na outra margem do rio sazonal que o separa de Muda-Mufo, conta que teve de caminhar por uma hora numa zona inundada e com água pelo peito.
O camponês de 1,86 metros de altura sobreviveu numa pequena elevação, com outras 11 famílias.
“Na quinta-feira eu vi que não dava para atravessar. Então, tive coragem, pois tinha de ir ver de outra família. Andei a pé, aos poucos, a descansar no caminho. Onde havia muita água, apanhava um momuchê [ninho de térmitas, mais alto que o solo em redor] e descansava. Até conseguir chegar aqui”, relata.
Nhanombe e outras famílias que tinham sido resgatadas durante o ciclone regressaram às zonas baixas meses depois, para voltar a cultivar os campos agrícolas com milho e arroz, mas agora tudo desapareceu.
Canoas de cascas de árvores
Nos caminhos desordenados e nos campos de arroz do bairro Magove circulam hoje canoas feitas à base de cascas de árvores, algumas das quais já tinham sido usadas em Março de 2019 no resgate de pessoas que tinham escapado às águas, subindo às árvores.
Troncos gigantes, panelas, pratos, pilões foram parar à estrada que conduz ao distrito de Búzi e que sofreu numerosos cortes. Alguns arriscam uma travessia a caminhar, outros a nado e outros ainda à boleia de canoas, que os pescadores dispensaram.
As autoridades distritais de Nhamatanda calculam que 5300 famílias, que correspondem a 26 mil pessoas, estejam a sofrer dos efeitos combinados de chuvas fortes e inundações nos últimos meses. Dos afectados, 725 famílias estão em três centros de abrigo, em Muda-Mufo, Tica e na vila sede de distrito de Nhamatanda.
Nem mesmo a repetição do sofrimento, num ano após outro, faz Paulo José mudar de ideias e fixar residência numa área segura, em vez de zonas baixas, que ficam habitualmente inundadas.
“Como sair daqui? Temos todos os bens aqui, cultivamos aqui. É um pouco difícil sairmos daqui, porque estamos acostumados”, refere.
A actual época das chuvas em Moçambique, de Outubro a Abril, já matou 54 pessoas e afectou cerca de 65 mil, muitas com habitações inundadas, segundo dados do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades.
O período chuvoso de 2018/2019 foi dos mais severos de que há memória: 714 pessoas morreram, incluindo 648 vítimas de dois ciclones (Idai e Kenneth) que se abateram sobre Moçambique.