Com os seus filmes, Regina Pessoa fez as pazes com a infância

Em 20 anos de carreira, a cineasta portuguesa fez quatro filmes que afirmaram a sua voz e identidade estética na animação internacional. O processo criativo de Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias, com o qual venceu um Annie Award, está em destaque a partir deste sábado na 15.ª edição da ANIMAR, em Vila do Conde.

A lareira está acesa, a gata Violeta dorme enroscada numa cadeira e sentamo-nos a conversar. “Levaram tudo”, diz-nos Regina Pessoa. A parede que serve de pano de fundo à sua mesa de trabalho está vazia. Era, até há poucos dias, suporte do mapa do processo criativo do filme Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias. Na Solar – Galeria de Arte Cinemática, em Vila do Conde, onde a partir deste sábado decorre a 15.ª edição da ANIMAR, vivem agora os registos textuais e gráficos do storyboard do filme, bem como pequenos objectos, frases, páginas dos diários e agendas do tio Tomás.

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A lareira está acesa, a gata Violeta dorme enroscada numa cadeira e sentamo-nos a conversar. “Levaram tudo”, diz-nos Regina Pessoa. A parede que serve de pano de fundo à sua mesa de trabalho está vazia. Era, até há poucos dias, suporte do mapa do processo criativo do filme Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias. Na Solar – Galeria de Arte Cinemática, em Vila do Conde, onde a partir deste sábado decorre a 15.ª edição da ANIMAR, vivem agora os registos textuais e gráficos do storyboard do filme, bem como pequenos objectos, frases, páginas dos diários e agendas do tio Tomás.

O espaço de trabalho da cineasta foi reproduzido em detalhe, desvendando os bastidores do filme que valeu a Regina Pessoa o galardão de melhor curta-metragem nos Annie Awards, um dos mais importantes prémios internacionais para o cinema de animação. Encontramo-nos com Regina Pessoa no seu ateliê, no espaço da Casa Museu de Vilar, onde vive e trabalha com o realizador, produtor e companheiro – “o meu maior cúmplice”  Abi Feijó.

Descreve Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias como o seu filme “mais autobiográfico de sempre”. Foi também, explica ao PÚBLICO, o que mais desafios lhe colocou ao nível técnico, por não querer abdicar da sua identidade estética mas desejar ao mesmo tempo incorporar todos os materiais e objectos que guardou do tio.

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Instalação sobre o filme Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias, na galeria Solar, em Vila do Conde Vera Moutinho

E há de tudo: navalhas, óculos, réguas, lanternas, e claro, as páginas com a infindável contabilidade, o enigma que foi sempre um fascínio para a sobrinha. “Como integrar diferentes universos de forma coerente no meu visual pessoal?”, perguntava-se Regina. Seguiu-se um percurso de descoberta de uma nova linguagem que é partilhado na exposição, mostrando como a realizadora explorou diferentes técnicas, misturando imagens reais com os seus desenhos.

A história de um tio enredado em pequenas obsessões, um tio-enigma – “hoje seria diagnosticado obsessivo-compulsivo”, diz a cineasta – é também uma homenagem ao homem que a incentivou a desenhar, numa parede de cal, com um pedaço de madeira queimada retirado da lareira, e a valorizar a simplicidade do quotidiano.

O tio-refúgio, que, por não ter trabalho fixo nem família, tinha tempo para os sobrinhos, excepto nos dias piores: “Hoje o tio está avariado!” Regina construiu a narrativa do filme em torno de uma carta que lhe escreveu, usando frases ditas e escritas pelo próprio e lidas, na versão portuguesa, por Abi Feijó. “Íamos dar passeios pelo campo e ele dizia: ‘O tio é um sentimental!’ E eu ficava a pensar: ‘O que é sentimental?’”.

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Excerto do filme Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias, onde a autora usou objectos reais do tio DR

“Tive um crescimento difícil, como muitas famílias no pós-25 de Abril num Portugal rural pobre e com dificuldades”, recorda a cineasta. “Havia problemas financeiros mas também familiares, a minha mãe tinha esquizofrenia e isso, numa pequena comunidade, é estigmatizado. Custou a crescer”, acrescenta. Toda a sua obra se funda na infância, com as memórias a servirem de combustível para a criação.

Foi Abi Feijó quem nos anos 90 incentivou Regina e outros jovens realizadores, então ligados ao estúdio de cinema de animação Filmógrafo, a procurarem a força das histórias que vinham de dentro, das suas próprias vidas. “Quando falamos das nossas vidas arriscamo-nos a ser mais originas”, diz Abi Feijó ao PÚBLICO, recordando esse período em que o talento de Regina era já evidente. "As pessoas vêm ter com a Regina e dizem: ‘Ah, todos temos um tio Tomás na nossa vida!'”.

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Regina Pessoa e Abi Feijó na Casa Museu de Vilar, em Lousada, onde instalaram em 2014 um Museu do Cinema de Animação Vera Moutinho

Logo ao primeiro filme, A Noite (1999), Regina quis abordar o medo do escuro que tinha em criança, espelho das dificuldades de comunicação com a mãe, que “fazia parte dessa escuridão”. Em 2005, com História Trágica com Final Feliz, uma menina diferente, cujo coração bate depressa (e alto) de mais, fala do contágio dessa estigmatização da doença da mãe. Com Kali, o Pequeno Vampiro, em 2012, Regina fechou a trilogia da infância e fez “as pazes” com esse período. “Neste novo filme, apesar de ainda me retratar como criança, já me vejo de fora, olho para o passado do ponto de vista da adulta que sou hoje.”

Agora, a cineasta diz ter entrado no ciclo das homenagens, e depois do tio Tomás será a vez da mãe: “Descobri que a minha mãe podia desenhar quando ela tinha 80 anos. Foi fascinante.” Com as dificuldades motoras inerentes à idade, conta Regina, o comportamento da mãe ficou mais difícil de gerir. Regina recorreu ao desenho. “Fizemos uma colecção de desenhos no meu iPad, sobretudo caras que nos olham, muito infantis, mas com um olhar que nos trespassa.” Regina procura no computador os retratos que a mãe fazia com o dedo no ecrã. “Mas não podia fazer muitos de seguida, ficava perturbada.”

Às caras desenhadas pela mãe (e também a fotografias da casa dela, sobretudo do sótão caótico), Regina vai juntar o seu universo estético, tal como fez em Tio Tomás. “Olha aqui, é um retrato que ela fez de mim, desenhou-me com duas bocas”, diz, rindo-se. Porquê? “Deve ter-se esquecido que já tinha feito uma. Se fosse outra velhinha diria que não queria desenhar, que não sabia, mas a minha mãe dizia: ‘Está bem’. Essa frescura fascinou-me.” 

Parece estar longe a menina de A Noite, com medo da escuridão da mãe. “Estou contente de ter conhecido esse lado dela. De certa forma ter também feito as pazes com essa pessoa, essa personagem que era a minha mãe.”