Património Cultural: e, de súbito, o impensável
Com as nomeações agora anunciadas pelo Governo, está em causa a captura de toda a área do património cultural pelos interesses da rentabilização imobiliária.
E, de súbito, o impensável. Como se os deuses da governação na área do património cultural tivessem enlouquecido todos aos mesmo tempo. No mesmo dia, ficámos a saber duas coisas notáveis, sendo que a segunda esclarece a verdadeira dimensão da primeira.
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E, de súbito, o impensável. Como se os deuses da governação na área do património cultural tivessem enlouquecido todos aos mesmo tempo. No mesmo dia, ficámos a saber duas coisas notáveis, sendo que a segunda esclarece a verdadeira dimensão da primeira.
Esta, a primeira, veio a público quando se soube que o PCP tinha requerido a audição urgente da ministra da Cultura em sede parlamentar, para esclarecer os fundamentos de um despacho da sua secretária de Estado que manda depositar em hotel privado colecções adquiridas pelo Estado e incorporadas no Museu Nacional dos Coches. Um despacho assombroso, que ficará nos anais, fazendo destronar o célebre decreto da vírgula. Aqui não, nada de dissimulação em vírgulas, tudo explícito: importa apoiar o grupo hoteleiro privado no âmbito do Revive; no hotel as peças ficarão acessíveis ao público (os mais cínicos dirão que até melhor, porque com entrada gratuita… desde que se invadam átrio e espaços públicos, talvez também os corredores e os quartos); e o Museu Nacional pode definir condições de conservação (os mais cínicos dirão também que melhor do que no próprio museu… porque neste a penúria é consabida e nos hotéis ou no turismo abunda a riqueza). Mas o principal fica por dizer. E tal resume-se nesta ironia: enquanto uma ministra participa à polícia o desaparecimento de obras de colecções públicas entregues para uso mais do que duvidoso, ainda que público (seria importante verificar também outros acervos retirados dos museus nacionais para mobilar gabinetes ministeriais, de que o último caso que recordo foi o de Paulo Portas), a secretária de Estado prossegue caminho contrário e coloca colecções públicas em grande risco, entregando-as a privados e ao serviço de apenas alguns.
Interrogámo-nos por que teria sido feito tal despacho, se pela pressão do turismo e da sua rede tentacular de interesses, se por real convicção, se por mera ingenuidade, ou até se por saber a sua autora que já cá não estará quando – assim nos ensina a vida – for de novo preciso participar à polícia. Mas de facto isso pouco importava, porque o que relevava era a espantosa leveza de qualquer político de circunstância ter a desfaçatez de entender que pode dispor, sem consequências políticas e até cíveis, de colecções de museus nacionais, ainda por cima contra os pareceres técnicos do seu departamento e até sem ouvir o órgão consultivo existente também para o efeito, sendo certo que as colecções incorporadas em museus nacionais apenas podem ser usadas segundo critérios museológicos, nos museus antes do mais, ou fora deles, mas em espaços adequados, de forma temporária e sempre no âmbito de programas museológicos.
Acontece que no mesmo dia em que ainda nos perguntávamos das razões deste lastimoso despacho recebemos a notícia que tudo iluminou: afinal não era apenas um museu e um hotel que estavam em causa; era a captura de toda a área do património cultural pelos interesses da rentabilização imobiliária. A nomeação, pela mesma secretária de Estado, aqui óbvia e necessariamente em articulação com a ministra e, quiçá, com o próprio primeiro-ministro, de um técnico do imobiliário, sem qualquer currículo atendível, para director-geral desta área (e de dois novos subdirectores-gerais, também aparentemente sem currículo credível), fala por si mais do que mil palavras – e abre o jogo de forma tão chocante que se diria impossível em qualquer governo, mormente num que se tem por ser de esquerda. É caso para dizermos que se regressa ao socratismo, no pior do seu pior.
A não haver rápida inversão de percurso, tempos interessantes se aproximam, pois. Tempos de afirmação da cidadania, de indignação e de acção popular, neste Portugal democrático, herdeiro de Abril.