Cinema e audiovisual: diluição ou distinção?
O anunciado plano a dez anos que Nuno Artur Silva tem para o sector terá de atender a várias questões, desequilíbrios e fragilidades.
O anunciado plano a dez anos do novo secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva, terá, quando for apresentado, para as calendas gregas, muita urgência a acudir e alguma resistência a evitar. Uma das urgências é resolver o atraso sistemático do anúncio dos montantes do Insituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e da abertura de concursos. Este ano os montantes foram anunciados no dia 24 de Janeiro mas os concursos estão por abrir. Como pode haver crescimento económico sustentável para um tecido empresarial já de si estruturalmente frágil sem datas, prazos ou planeamento?
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O anunciado plano a dez anos do novo secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva, terá, quando for apresentado, para as calendas gregas, muita urgência a acudir e alguma resistência a evitar. Uma das urgências é resolver o atraso sistemático do anúncio dos montantes do Insituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e da abertura de concursos. Este ano os montantes foram anunciados no dia 24 de Janeiro mas os concursos estão por abrir. Como pode haver crescimento económico sustentável para um tecido empresarial já de si estruturalmente frágil sem datas, prazos ou planeamento?
A questão entronca noutra. Porquê os conflitos permanentes entre o ICA e os produtores independentes? Para começar, e relativamente aos júris dos concursos, constata-se uma diferença de critérios em casos semelhantes ou o contrário. Mais se verifica livre-arbítrio dos júris (que decidem mesmo contra posições do ICA) e se consideram soberanos sem se darem conta do seu poder discricionário. Não deveriam as suas decisões ser sempre devidamente fundamentadas? Por que é que os relatórios iniciais dos júris não são comunicados aos concorrentes? Na semana passada, a sobranceria das justificações finais do Júri do Apoio à Produção de Obras Audiovisuais e Multimédia 2019 era directamente proporcional à sua insegurança, fragilidade e falta de rigor. No sistema do Eurimages que inspirou o actual secretário de Estado na Consulta de Conteúdos da RTP e que talvez venha a inspirar o ICA futuramente, os 100 que concorrem são reduzidos a uma shortlist de dez, da qual, após um pitch, sobram apenas quatro candidatos... Tal sistema resolverá certamente o problema dos dez seleccionados, mas não o dos cem que concorrem.
Outro dos graves problemas prende-se com as filmagens propriamente ditas. Meio ano após a sua criação pela senhora ministra da Cultura, Graça Fonseca, a Portugal Film Comission, que almejava promover o país não só como origem mas também como destino e simplificar logísticas administrativas e tributárias, consegue visivelmente promover a Baixa de Lisboa. Já o evento filmar continua a ser, em termos aduaneiros e tributários, da maior complexidade em todo o país!
É urgente a integração das políticas da RTP e do ICA, bem como, no futuro, das novas plataformas. Creio que falo por muitos quando defendo um sector cinematográfico e audiovisual mais coeso e equitativo, que integre produção de cinema e audiovisual, novas plataformas, distribuição e exibição, que trabalhe no sentido da melhoria da qualidade dos produtos, do reforço do tecido de produção, da acuidade das formas de distribuição e exibição. Infelizmente, o que acontece hoje é que as encomendas da RTP não chegam a todos os produtores independentes e mantêm-se em quantidade, proporção e valor insatisfatórios. A actual administração iniciou o seu mandato com uma postura que infelizmente não está a conseguir manter. O lema “vender e dar trabalho” deve ser seguido à letra para que a RTP contrate mais obras a produtoras independentes. Outra conversa são os conteúdos em português. Acreditando nós não estarem ainda as audiências estruturalmente internacionalizadas para que a televisão pública as tenha em tão alta consideração, achamos legítimo perguntar: como ler melhor os “conteúdos em português” da letra da lei portuguesa?
Outra insistência da RTP para com os produtores independentes, digna de palmatória e explanada a cada contrato assinado com o exterior, é o conceito de co-produtora. A RTP não deve ser co-produtora, nem o é, porque só paga no final, deixando os produtores sem adiantamento de caixa. A dificuldade insanável de trabalhar com a RTP resultou numa cópia da lei espanhola das sociedades de garantia, mas o protocolo com a Lis Garante para completar o apoio da estação pública, funcionando como adiantamento de caixa aos produtores portugueses, tornou-se letra morta. E porquê? Pergunte este jornal à Caixa Geral de Depósitos.
Em 2021 Portugal presidirá à União Europeia. Até lá teremos a transposição das directivas, onde o que interessa é saber como é que os grandes grupos internacionais vão deixar cá uma parte dos seus fantásticos lucros. Com investimento ou pagando uma taxa? Para começar, não sabemos com quantos subscritores eles trabalham. Mesmo apurando alguma coisa em sede de IVA, não se conhecem as audiências e a falta de escala portuguesa é apresentada como razão para a falta de informação. No meio de tudo o que está por fazer, bem haja a proposta apresentada pelo Bloco de Esquerda em sede do debate na especialidade do Orçamento de Estado: incluir as plataformas de streaming entre os contribuintes da taxa prevista no numero 2 do artigo 10.º da Lei da Arte do Cinema e das Actividades Cinematográficas.
Tal medida permitirá a tributação de plataformas como a Netflix e a HBO, inexplicavelmente ainda não abrangidas na curta lista de contribuintes da taxa de serviços de streaming de conteúdos audiovisuais online. Além de actualizar e expandir o número de potenciais contribuintes, a alteração permitirá aumentar os apoios à produção artística e audiovisual, que continua a trabalhar com valores de há uma dezena de anos. Bem-vinda será igualmente a iniciativa de fazer cumprir o regime transitório 2014/2019 e de o passar a definitivo, com as operadoras a pagarem os 3,75 euros da recuperação dos valores originais de 2012 da já referida Lei do Cinema e das Actividades Cinematográficas e Audiovisuais. Ambas as iniciativas são no interesse da evolução do cinema em Portugal.
Restam as salas. Como dinamizar a exibição em sala? Ver cinema em sala não é apenas fugir ao quotidiano, ou namorar, ou ter melhor qualidade de imagem ou de som, como um grande grupo exibidor agora apregoa. Ver cinema em sala é pressentir desconhecidos em volta ao mesmo tempo que se escuta a nossa mais profunda intimidade exposta em tela. O resultado é um clique que nos torna melhores pessoas. Uma faísca público-privada que nos faz querer, para sempre, estar do lado do cinema, isto é, do lado do bem!