Lições do “Brexit”
O Reino Unido pós-“Brexit” está confrontado com dois desafios históricos: a sua própria existência e o seu lugar no mundo.
Foram 47 anos no projeto europeu. Agora acabou. O Reino deixou a União Europeia. A decisão é histórica, mas não temos ainda a noção da sua verdadeira dimensão. Sabemos que se inicia agora o período transitório. Que o Reino Unido e a União Europeia vão ter que negociar os termos do seu relacionamento futuro. Um novo acordo económico e comercial, certamente, mas também uma parceria em matéria de segurança e defesa e quiçá um modelo de cooperação internacional nas questões de governança global. Mas não sabemos mais nada. E não sabemos, sobretudo, que consequências terá sobre o futuro do Reino Unido e da própria União Europeia.
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Foram 47 anos no projeto europeu. Agora acabou. O Reino deixou a União Europeia. A decisão é histórica, mas não temos ainda a noção da sua verdadeira dimensão. Sabemos que se inicia agora o período transitório. Que o Reino Unido e a União Europeia vão ter que negociar os termos do seu relacionamento futuro. Um novo acordo económico e comercial, certamente, mas também uma parceria em matéria de segurança e defesa e quiçá um modelo de cooperação internacional nas questões de governança global. Mas não sabemos mais nada. E não sabemos, sobretudo, que consequências terá sobre o futuro do Reino Unido e da própria União Europeia.
O “Brexit” não dividiu, apenas, o Reino Unido da União Europeia, dividiu também o Reino Unido, ele próprio. Entre os mais jovens, mais qualificados e bem pagos, mais urbanos e mais cosmopolitas – ganhadores da globalização – que votaram a favor da permanência na União. E os mais velhos, menos instruídos, desempregados, mais rurais e mais nacionalistas – perdedores da globalização – que votaram a favor da saída. Mas as clivagens não foram só geográficas, sociais ou geracionais. Foram também nacionais. E dividiram as nações que formam o Reino Unido: a Inglaterra por um lado, a Escócia e a Irlanda do Norte por outro. E durante os três anos que durou a saga do “Brexit”, tais clivagens não só não desapareceram como se consolidaram.
Nas últimas eleições no Reino Unido, a vitória de Boris Johnson foi uma vitória, exclusivamente, inglesa. Na Escócia venceram os nacionalistas que reclamaram já um novo referendo sobre a independência com o objetivo manifesto de, uma vez independentes, pedirem a adesão à União Europeia. Nas eleições irlandesas, o Sinn Féin, que sempre lutou pela reunificação das duas Irlandas, acaba de obter um resultado histórico, o que não deixará de reforçar a posição dos que reclamam um referendo sobre a unificação. Isto, para além do acordo do “Brexit” deixar já a economia da Irlanda do Norte do lado da economia do Sul, isto é, do lado europeu.
O Reino Unido pós-“Brexit” está confrontado com dois desafios históricos. O primeiro é o da sua própria existência: perante as clivagens internas e as derivas nacionalistas no interior do reino, conseguirá Boris Johnson superar as divisões, vencer as forças centrífugas e assegurar a unidade política, ou, pelo contrário, estará a caminho de se tornar o último primeiro-ministro do Reino Unido? O segundo é o do seu lugar no mundo. O Reino Unido abandona a União Europeia, em busca da uma soberania reconquistada e de um Império perdido. Chamam-lhe, agora, “Global Britain”. Isto é, sai da Europa para se tornar uma potência global. Mas terá dimensão para rivalizar com as potências globais? Sobretudo quando perde a sua mais-valia estratégica de ponte entre os Estados Unidos e a Europa? E precisamente no momento em que Trump faz tudo para enfraquecer a União Europeia e manter um Reino Unido complacente? Não quer ser europeu, mas dificilmente será global. E quem sabe atravessará um isolamento que não será tão “esplêndido” como o da era vitoriana.
Mas não sabemos, também, a dimensão histórica das consequências sobre a União Europeia. Pela primeira vez um Estado-membro abandona o projeto europeu pondo em causa o princípio do “ever closer union”. Significa isto o princípio da desagregação da União Europeia? Ou, pelo contrário, as dificuldades do “Brexit” terão dissuadido os outros Estados de seguir o mesmo caminho? Não sabemos. Mas sabemos que a Europa nunca foi uma realidade orgânica. Foi sempre uma construção política. Que não tem unidade linguística, cultural ou religiosa e que é composta de múltiplas nacionalidades. Que oscilou sempre entre forças centrífugas e centrípetas, entre movimentos de fragmentação e de unificação. Que teve momentos de hegemonia dos senhorios feudais ou dos Estados-nação e momentos de hegemonia dos Impérios ou da integração europeia. E é por isso que a unidade foi sempre um projeto político, construído sobre a diversidade.
Ora, talvez seja esta, no fundo, a verdadeira lição que o “Brexit” nos deixa a todos nós europeus, britânicos e continentais. Construir a unidade europeia sem respeitar as diversidades nacionais não dá bom resultado. Mas pior é quando não há unidade, quando os interesses nacionais não têm limites, as rivalidades entre Estados triunfam e os nacionalismos imperam. Nós sabemos o que isso significa. E não é, certamente, a paz, a prosperidade e a democracia que a integração europeia nos legou.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico