Vírus 2019-nCoV, perigo amarelo e teorias da conspiração
1. A China e os chineses estão hoje no centro da disseminação de um novo vírus que pode matar, o coronavírus (2019-nCoV), o qual parece estar a espalhar-se pelo planeta. Afinal, estamos numa era de globalização onde quase tudo se propaga rapidamente, seja nos mercados financeiros, na indústria e no cinema, ou nas doenças. Pelas reacções de pânico e antichinesas, um europeu que tivesse vivido na transição do século XIX para o século XX julgaria que o “perigo amarelo” regressou. Nessa época, marcada por fortes rivalidades imperiais e coloniais, apesar de não existir Internet, nem redes sociais, uma obsessão com a China (em parte também como o Japão) espalhou-se na Europa, especialmente no Império Britânico de finais do século XIX, não por acaso a potência global desse período. A par da imprensa, a literatura de ficção colonial, com histórias extraordinárias de aventureiros e vilões exóticos, marcava a imaginação popular e influenciava a opinião pública.
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1. A China e os chineses estão hoje no centro da disseminação de um novo vírus que pode matar, o coronavírus (2019-nCoV), o qual parece estar a espalhar-se pelo planeta. Afinal, estamos numa era de globalização onde quase tudo se propaga rapidamente, seja nos mercados financeiros, na indústria e no cinema, ou nas doenças. Pelas reacções de pânico e antichinesas, um europeu que tivesse vivido na transição do século XIX para o século XX julgaria que o “perigo amarelo” regressou. Nessa época, marcada por fortes rivalidades imperiais e coloniais, apesar de não existir Internet, nem redes sociais, uma obsessão com a China (em parte também como o Japão) espalhou-se na Europa, especialmente no Império Britânico de finais do século XIX, não por acaso a potência global desse período. A par da imprensa, a literatura de ficção colonial, com histórias extraordinárias de aventureiros e vilões exóticos, marcava a imaginação popular e influenciava a opinião pública.
2. A expressão “perigo amarelo” está directamente ligada à obra literária do escritor britânico Matthew Phipps Shiell, mais conhecido como M. P. Shiel. Em 1898 surgiu um conjunto histórias ficcionais sob a forma de folhetim semanal intituladas The Empress of the Earth: The Tale of the Yellow War (A Imperatriz da Terra: O Conto da Guerra Amarela). Estas deram origem ao livro The Yellow Danger (O Perigo Amarelo). O que poderia ter sido mais um folhetim de aventuras sem despertar grande interesse no público ganhou notoriedade na Inglaterra vitoriana devido a episódios reais ligados às rivalidades imperiais e coloniais no Extremo Oriente. Nessa altura, a rival Alemanha procurava projectar o seu poder na China obtendo concessões territoriais e zonas de influência, com intervenções militares e intrigas políticas à mistura. Mas o pesadelo maior era que a China se aliasse ao Japão contra o Ocidente (este último num processo de modernização e ascensão de poder) para expulsar os britânicos da Ásia. Em 1900, a revolta dos Boxers contra a presença ocidental na China, especialmente devido às acções de missionários cristãos e comerciantes, deu à ficção de M. P. Shiel tonalidades de realidade quanto ao “perigo amarelo”.
3. No início do século XX um outro britânico, Sax Rohmer (Arthur Henry Sarsfield Ward), criou o diabólico Dr. Fu Manchu — o personagem surgiu, pela primeira vez, em 1912-1913, sob o título The Mystery of Dr. Fu-Manchu — como o arquétipo da ameaça chinesa à civilização ocidental. Tratava-se de um génio criminoso que combinava o conhecimento científico ocidental com diabólicos poderes ocultos orientais. Assim, o misterioso e sinistro Dr. Fu Manchu personificava o “perigo amarelo”, jogando com o medo ocidental de uma cultura desconhecida e com o receio de uma expansão do poder e da influência chinesa (e asiática) no mundo. Tornou-se rapidamente popular na banda-desenhada e no cinema, com múltiplas adaptações das obras de Sax Rohmer com prestigiados actores como Boris Karloff. Uma interessante análise crítica dessa construção ficcional, produto da mentalidade e estereótipos coloniais e imperiais e das suas representações literárias e cinematográficas, foi efectuada por Christopher Frayling (ver The Yellow Peril: Dr. Fu Manchu & The Rise of Chinaphobia, Thames and Hudson Ltd, 2014).
4. Na actualidade, o surgimento do vírus 2019-nCoV que pode infectar e matar seres humanos, não alimenta apenas uma vaga de chinofobia e os receios de um novo “perigo amarelo”, no Ocidente e noutras partes do mundo. É também um terreno fértil para múltiplas teorias da conspiração. Fundamentalmente, parece haver aqui duas teses antagónicas. A mais popular na Internet e nas redes sociais sugere que o vírus foi criado artificialmente para fazer descarrilar a China da sua trajectória de extraordinário sucesso dos últimos anos. A ser assim, estaríamos perante um terrível acto de guerra biológica que teria a mão oculta do Governo dos EUA na sua origem. Ao introduzirem o vírus na população chinesa, os norte-americanos estavam a prejudicar seriamente um rival que disputa a sua hegemonia mundial — seria uma espécie de acção paralela face à guerra comercial. Para além das “certezas” que abundam sempre nas redes sociais, sobre este e muitos outros assuntos onde não há factos conhecidos sólidos, pelo menos na Rússia há também quem defenda esta origem maliciosa do vírus 2019-nCoV e tenha a “certeza” — ou queira criar essa ideia —, de que houve mesmo um acto humano maligno por detrás deste vírus
5. Numa outra versão que terá tido origem em Israel, mas tem sobretudo seguidores nos EUA, a China está a ser vítima do seu próprio programa secreto de armas biológicas devido a um acidente ocorrido no Instituto de Virologia de Wuhan. A China estaria assim a viver o seu “momento Tchernobil”, ou seja, a atravessar uma crise comparável aquela pela qual a União Soviética passou em 1986, quando ocorreu esse desastre nuclear no território da actual Ucrânia. E tal como a União Soviética, está a tentar negar o sucedido e a o ocultar a extensão das vítimas. Seja qual for a exacta realidade dos factos — e nenhum facto público confirmou até agora essa tese —, há um grave problema de saúde pública, pois o coronavírus já matou mais gente na China do que a anterior epidemia de SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome / síndrome respiratória aguda grave). Além disso, há ainda uma clara dimensão económica e geopolítica que não existiu anteriormente.
Em 2003, a economia chinesa e o seu grau de integração na economia global eram bem inferiores aos de hoje, pelo que o impacto da epidemia de SARS não teve a intensidade que agora é possível observar — só o tempo mostrará a real dimensão e impacto do vírus 2019-nCoV, até porque o Estado chinês não é nada transparente. Ao mesmo tempo, em termos geopolíticos, é inevitável a leitura de que a China é o grande perdedor desta nova epidemia, pelos danos sofridos pela sua população e pela paralisação de partes importantes da sua economia. Mas quer os receios de um “perigo amarelo” que expandem uma chinofobia irracional e por vezes agressiva, quer o eventual enraizamento, entre os chineses, de que houve uma conspiração feita pelos seus inimigos, são sinais preocupantes. Intensificam o mal-estar num mundo onde estão em curso múltiplos conflitos e há tensões políticas evidentes das quais o vírus 2019-nCoV pode ser um novo propagador.